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BERNARDO CARVALHO
Sobras e sombras
O Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro exibe a
partir de hoje a mostra "Andy
Warhol: Motion Pictures", com 12
filmes selecionados entre as centenas de "screen tests" que o artista
realizou entre 1964 e 1966. Os filmes, que não duram mais do que
poucos minutos cada um, foram
convertidos em DVDs. Fazem
parte do acervo do MoMA. Depois da reforma do museu, em
Nova York, ganharam uma sala
permanente, onde são exibidos
em grandes telas, em tempo contínuo. São retratos em movimento,
filmes mudos, em preto-e-branco,
em que os visitantes da Factory, o
célebre estúdio de Warhol, em geral celebridades ou gente do seu
círculo de amizades, aparecem
em close-ups, em testes de câmera, à maneira dos atores.
Num conhecido ensaio sobre o
cinema de Andy Warhol ("Stargazer", 1973), Stephen Koch desafia a autodefinição do artista de
que não haveria nada por trás da
superfície dos seu filmes. Partindo
da constatação de que Warhol
era obcecado pela dissimulação, o
crítico conclui que havia, sim, um
motivo (a morte) e que todos os
seus filmes expressavam, em
maior ou menor grau, uma espécie de necrofilia.
Segundo Koch, a "imagem compulsiva da morte" estaria não só
no olhar das pessoas filmadas
mas sobretudo no silêncio e na
imobilidade, que é o fundamento
dos "screen tests" (por alguns minutos, os "modelos" eram convidados a posar para uma câmera
16 mm, como se estivessem sendo
fotografados). Nesse sentido, o
exemplo mais contundente continua sendo "Sleep" (sono, 1963),
em que a câmera registra por seis
horas um homem (John Giorno)
dormindo.
A conclusão de Koch é pertinente, mas não acrescenta nem revela muito sobre o cinema de Warhol, se levarmos às últimas conseqüências a idéia de que toda fotografia (e, por tabela, todo filme) é,
de uma forma ou de outra, em
sua essência, uma representação
da morte (uma mumificação moderna de corpos desaparecidos e
momentos passados, na definição
de André Bazin). No fundo, a obsessão do artista pelas dissimulações não é o contrário da imagem
compulsiva da morte, mas já está
ligada a ela.
Warhol se expressava por paradoxos. Quando dizia que não havia nada por trás da superfície
dos seus filmes, estava tentando
se livrar das interpretações baratas e das respostas feitas, queria
levar o espectador a procurar um
outro tipo de resposta, que não se
contentasse com as fórmulas do
seu tempo, uma resposta que não
precisasse ser interpretativa, que
ainda não tivesse encontrado
uma forma de se exprimir. Servia-se da reprodução mecânica
das imagens para escapar ao lugar-comum e ao automatismo
dos sentidos.
No seu ensaio sobre a fotografia, "A Câmara Clara", Roland
Barthes comenta um retrato de
Andy Warhol feito por Duane
Michals. O artista esconde o rosto
com as mãos. Mas o que interessa
ao ensaísta não é a pose intelectualmente programada; são as
unhas das mãos que cobrem o
rosto e que lhe parecem repugnantes. Não é o "motivo", a intenção da foto, que atrai a atenção
do crítico, mas o que a imagem
revela de qualquer jeito, na superfície, a despeito das motivações.
Tanto faz o que pretendia o modelo ou o fotógrafo. Da mesma
forma, o mecanismo automático
dos "screen tests" é muito mais
potente do que a vontade dos indivíduos filmados. Num dos filmes, o jovem Dennis Hopper desafia a imobilidade e o silêncio,
cantarola uma canção, cria uma
singularidade. Mas sua transgressão não subverte nada. Tanto faz
se ele canta ou não. Seu ato só reforça a aura fantasmagórica. A
chave não está nele; está no mecanismo fotográfico e no olhar do
espectador.
Entre os contos de Virginia
Woolf recém-publicados pela Cosac Naify, há um ("Retrato 3") em
que a narradora está diante de
uma mulher sentada ao sol, no
pátio de uma pousada: "Eu a observava (...), e ela era, perenemente e inteiramente resolvido, o problema da vida". Como nos filmes
de Warhol, a revelação aqui tem
a ver com o desejo do espectador.
O imprevisto e o inexplicável, que
emergem na superfície das coisas
(e na visão dos corpos: as unhas,
para Barthes, no retrato de Warhol), dependem mais do olhar do
espectador do que das intenções
de quem é observado. É essa a
matéria e o mistério dos "screen
tests". O espectador quer ver
além. Acha que não é possível que
não haja nada por trás. E é assim
que esses filmes curtíssimos incitam a busca de respostas até então inexprimíveis.
Os "screen tests" remetem o cinema à sua origem fotográfica:
"Essa imagem que produz a morte, querendo conservar a vida",
como diz Barthes. São mumificações. Ali está a imagem embalsamada de um corpo que já não é
assim, se é que ainda existe. A
imagem é um fantasma, uma
sombra. Como os precursores da
fotografia, Warhol "produz a
morte, querendo conservar a vida".
"Quando morrer, não quero
deixar nenhuma sobra. E não
quero ser nenhuma sobra. Nesta
semana, assistindo à TV, vi uma
senhora que entrava numa máquina de raios e desaparecia. Foi
uma coisa maravilhosa, porque a
matéria é energia e ela simplesmente se dispersou. Essa poderia
ser uma autêntica invenção americana, a melhor invenção americana: ser capaz de desaparecer", o
artista escreveu em "A Filosofia
de Andy Warhol". Passou a vida
inteira fazendo o contrário. Fabricando paradoxos. Deixando
sobras, como os "screen tests".
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