São Paulo, terça-feira, 26 de abril de 2005

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BERNARDO CARVALHO

Sobras e sombras

O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro exibe a partir de hoje a mostra "Andy Warhol: Motion Pictures", com 12 filmes selecionados entre as centenas de "screen tests" que o artista realizou entre 1964 e 1966. Os filmes, que não duram mais do que poucos minutos cada um, foram convertidos em DVDs. Fazem parte do acervo do MoMA. Depois da reforma do museu, em Nova York, ganharam uma sala permanente, onde são exibidos em grandes telas, em tempo contínuo. São retratos em movimento, filmes mudos, em preto-e-branco, em que os visitantes da Factory, o célebre estúdio de Warhol, em geral celebridades ou gente do seu círculo de amizades, aparecem em close-ups, em testes de câmera, à maneira dos atores.
Num conhecido ensaio sobre o cinema de Andy Warhol ("Stargazer", 1973), Stephen Koch desafia a autodefinição do artista de que não haveria nada por trás da superfície dos seu filmes. Partindo da constatação de que Warhol era obcecado pela dissimulação, o crítico conclui que havia, sim, um motivo (a morte) e que todos os seus filmes expressavam, em maior ou menor grau, uma espécie de necrofilia.
Segundo Koch, a "imagem compulsiva da morte" estaria não só no olhar das pessoas filmadas mas sobretudo no silêncio e na imobilidade, que é o fundamento dos "screen tests" (por alguns minutos, os "modelos" eram convidados a posar para uma câmera 16 mm, como se estivessem sendo fotografados). Nesse sentido, o exemplo mais contundente continua sendo "Sleep" (sono, 1963), em que a câmera registra por seis horas um homem (John Giorno) dormindo.
A conclusão de Koch é pertinente, mas não acrescenta nem revela muito sobre o cinema de Warhol, se levarmos às últimas conseqüências a idéia de que toda fotografia (e, por tabela, todo filme) é, de uma forma ou de outra, em sua essência, uma representação da morte (uma mumificação moderna de corpos desaparecidos e momentos passados, na definição de André Bazin). No fundo, a obsessão do artista pelas dissimulações não é o contrário da imagem compulsiva da morte, mas já está ligada a ela.
Warhol se expressava por paradoxos. Quando dizia que não havia nada por trás da superfície dos seus filmes, estava tentando se livrar das interpretações baratas e das respostas feitas, queria levar o espectador a procurar um outro tipo de resposta, que não se contentasse com as fórmulas do seu tempo, uma resposta que não precisasse ser interpretativa, que ainda não tivesse encontrado uma forma de se exprimir. Servia-se da reprodução mecânica das imagens para escapar ao lugar-comum e ao automatismo dos sentidos.
No seu ensaio sobre a fotografia, "A Câmara Clara", Roland Barthes comenta um retrato de Andy Warhol feito por Duane Michals. O artista esconde o rosto com as mãos. Mas o que interessa ao ensaísta não é a pose intelectualmente programada; são as unhas das mãos que cobrem o rosto e que lhe parecem repugnantes. Não é o "motivo", a intenção da foto, que atrai a atenção do crítico, mas o que a imagem revela de qualquer jeito, na superfície, a despeito das motivações.
Tanto faz o que pretendia o modelo ou o fotógrafo. Da mesma forma, o mecanismo automático dos "screen tests" é muito mais potente do que a vontade dos indivíduos filmados. Num dos filmes, o jovem Dennis Hopper desafia a imobilidade e o silêncio, cantarola uma canção, cria uma singularidade. Mas sua transgressão não subverte nada. Tanto faz se ele canta ou não. Seu ato só reforça a aura fantasmagórica. A chave não está nele; está no mecanismo fotográfico e no olhar do espectador.
Entre os contos de Virginia Woolf recém-publicados pela Cosac Naify, há um ("Retrato 3") em que a narradora está diante de uma mulher sentada ao sol, no pátio de uma pousada: "Eu a observava (...), e ela era, perenemente e inteiramente resolvido, o problema da vida". Como nos filmes de Warhol, a revelação aqui tem a ver com o desejo do espectador. O imprevisto e o inexplicável, que emergem na superfície das coisas (e na visão dos corpos: as unhas, para Barthes, no retrato de Warhol), dependem mais do olhar do espectador do que das intenções de quem é observado. É essa a matéria e o mistério dos "screen tests". O espectador quer ver além. Acha que não é possível que não haja nada por trás. E é assim que esses filmes curtíssimos incitam a busca de respostas até então inexprimíveis.
Os "screen tests" remetem o cinema à sua origem fotográfica: "Essa imagem que produz a morte, querendo conservar a vida", como diz Barthes. São mumificações. Ali está a imagem embalsamada de um corpo que já não é assim, se é que ainda existe. A imagem é um fantasma, uma sombra. Como os precursores da fotografia, Warhol "produz a morte, querendo conservar a vida".
"Quando morrer, não quero deixar nenhuma sobra. E não quero ser nenhuma sobra. Nesta semana, assistindo à TV, vi uma senhora que entrava numa máquina de raios e desaparecia. Foi uma coisa maravilhosa, porque a matéria é energia e ela simplesmente se dispersou. Essa poderia ser uma autêntica invenção americana, a melhor invenção americana: ser capaz de desaparecer", o artista escreveu em "A Filosofia de Andy Warhol". Passou a vida inteira fazendo o contrário. Fabricando paradoxos. Deixando sobras, como os "screen tests".


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