São Paulo, Segunda-feira, 26 de Abril de 1999
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FERNANDO GABEIRA
O sistema financeiro nas águas do Formoso

O rio Formoso fica em Bonito. Tem pouco mais de 100 quilômetros de água verde escura, quase azul. São águas lavadas pelo calcário, transparentes. É possível descer nele um trecho de um quilômetro, deixando que a correnteza nos arraste suavemente. Com ajuda da máscara e do canudo para respirar, o snorkel, podemos ver tudo que se passa no fundo, cruzando com cardumes que seguem rio abaixo. A cerca de 20 centímetros da minha cabeça, nadava um dourado que me guiou pelos mistérios do rio quase 400 metros.
O Formoso é apenas um rio de Bonito. Existem outros tão belos como ele. Esta região do Mato Grosso do Sul apresenta verdadeiros paraísos aquáticos e se transforma rapidamente num centro de turismo nacional.
O Pantanal ainda concentra os sonhos dos visitantes por causa de sua riqueza em pássaro e peixe. Mas os rios de Bonito são um dos pontos mais interessantes do mundo, sobretudo para quem gosta de água cristalina.
Tanto Bonito como o Pantanal são recursos estratégicos do Brasil.
Pensei em escrever sobre eles, mas, quando emergi, soube que houve um escândalo federal e Chico Lopes, ex-presidente do Banco Central, estava metido nele, porque descobriram que tinha U$1,7 milhão.
Ninguém sabe dizer aqui se a grana é legal. Por que o escândalo? Creio que a surpresa desempenhou seu papel. Chico Lopes parecia um tranquilo homem da classe média, que, como todos nós, compra carro em 36 prestações e sente um frio na barriga quando chega a conta do cartão de crédito. Sabê-lo milionário é sentir-se traído.
Ele parece um desses intelectuais distraídos, sempre às voltas com livros e idéias, usando um casaco de tweed com o cotovelo costurado em couro e fumando um cachimbo, lembranças do curso no exterior.
Fomos enganados pela aparência, ou nós é que não percebemos que os intelectuais estão mudando? Na nossa fantasia, os condenamos a viver em apartamento alugado, ao carro popular e uma viagem de dois em dois anos.
Talvez seja necessário sacudir nossos conceitos. Conhecimento, hoje, chama-se capital humano, e informação, privilegiada ou não, tornou-se uma mercadoria. Refinados economistas querem ser banqueiros e sua aura romântica é uma réplica dos delegados de policia que, antigamente, tocavam piano.
Falar disso agora é tão inútil como descrever as profundezas do Formoso.
Vivemos um momento de fúria cívica. Quem lucrou, quem perdeu, quem declarou, quem sonegou, onde é que você estava no dia em que o dólar ultrapassou os dois reais?
Daqui a pouco poderemos estudar esta geração de economistas que criam as regras do jogo, formulando as políticas do governo. Eles se dão muito bem dirigindo empresas particulares. Mas, igualmente, se dão bem com escritórios que prevêem o futuro imediato.
O foco no momento é o comércio de informações privilegiadas. Não me meto muito nisto, pois disponho de poucos dados novos e há uma CPI para isto, sem contar as dezenas de repórteres cavando furos e procuradores catando documentos.
Ouso apenas afirmar que a mercadoria competência rivaliza com a mercadoria informação privilegiada. Esses economistas sabem o caminho das pedras porque estudam muito e se informam adequadamente. O comércio de "inside information", suponho eu, é apenas um atalho para a prosperidade que viria, de qualquer maneira, um pouco mais lenta e generosa.
Devem existir dois tipos de demanda. O desenho de cenários dinâmicos, que requer uma permanente capacidade de análise, e a chamada informação de cocheira, que possibilita uma grande tacada.
Convivendo com tanta intimidade com a formação de fortunas, dando um empurrão em negócios milionários, os grandes economistas que deixam a teoria para mergulhar na prática devem ser tentados a cada instante pela deusa fortuna.
Aqui em Bonito, minha missão não é julgar e sim mergulhar antes que o inverno esfrie demais essas águas deslumbrantes. Deixo essas notas para revê-las depois. Sinto apenas que analisar, informar, orientar são tarefas que vão seguir enriquecendo, pois o mercado é turvo como as águas do Miranda.
Estão aí duas grandes fortunas, Bill Gates e George Soros, diferentes dos milionários que faziam carros e erguiam indústrias. Escrevem livros, dão palestras, são uma mistura de rico profissional e diletante intelectual, um novo produto dessas rápidas mudanças que o fim de século nos reservou. Tão rápidas que sequer as entendemos bem aqui, sudoeste do Mato Grosso do Sul.


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