São Paulo, Segunda-feira, 26 de Abril de 1999
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MÚSICA
Tureck mantém o pulso em "Variações"

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Fama aos 18 anos, reconhecimento quase imediato, seguido de uma carreira internacional e numerosas gravações, mais honrarias acadêmicas; retiro voluntário em Oxford, dedicação ao ensino e à pesquisa, distância do mundo comercial da música, virtual esquecimento do público.
E agora, aos 85 anos, uma reentrada triunfal, aplaudida como uma das maiores figuras musicais do nosso tempo.
Esse resumo, muito abreviado, poderia ser a trama de algum conto perdido de Henry James; mas sintetiza a carreira real dessa pianista maravilhosa e estranha que é Rosalyn Tureck.
Ao lado da cravista polonesa Wanda Landowska (1877-1959) e do pianista canadense Glenn Gould (1932-82), a americana Tureck compõe um triunvirato de intérpretes modernos da música de Bach.
Dos três, a cravista é paradoxalmente a mais romântica, no sentido comum da palavra: uma artista de grandes sentimentos e grandes liberdades.
Comparado a ela, Gould, por mais idiossincrático, soa como um estilista clássico, dedicado à pureza do desenho. Já Tureck é uma artista mais enigmática, para além do mundo humano das formas, elevada a um domínio impessoal da música, um universo de contraponto e verdade, que ela chama de "Bach".
"Pouco antes de completar 17 anos, tive uma experiência que mudou minha vida", relata ela num texto que acompanha seu novo disco, um CD duplo com as "Variações Goldberg" de Bach (gravadora Deutsche Grammophon).
"Tinha começado a trabalhar no "Prelúdio e Fuga" em lá menor do primeiro volume do "Cravo Bem Temperado" quando, ao perceber o que eram os materiais essenciais da exposição, sofri um desmaio. Fiquei desacordada não sei por quanto tempo; quando voltei a mim, tinha uma visão inteiramente nova da música de Bach... Um modo inteiramente novo de conceber a forma e a estrutura musical."
Nem aqui, nem em qualquer outro texto (incluindo seu tratado em três volumes, "Introduction to the Performance of Bach"), Tureck deixa claro o que vem a ser esse modo novo de pensar a lógica musical barroca.
Nas notas que acompanham outro disco recente, com as "Partitas" (na série "Great Pianists of the Twentieth Century", da Philips -primeiro responsável por sua reconquistada celebridade), o musicólogo John Ardoin fala de "formas que emergem... como um grupo de células em desenvolvimento, combinando-se a outros grupos até que o todo resulte num organismo vivo". A analogia é instigante, mas não mais palpável.
Metáforas e símiles não ajudam muito nesse caso; mas um compasso ouvido é o bastante para se perceber a presença de uma inteligência musical distinta de qualquer outra.
E uma presença dessas não se deixa traduzir pelas generalidades da língua: não se deixa traduzir por nada, embora faça de cada um de nós o seu tradutor predestinado, na língua interna do que não tem palavras.
Foi um ano após o desmaio visionário que Tureck descobriu as "Variações Goldberg". Em cinco semanas, ela aprendeu e tocou de memória os 90 minutos de música.
Voltaria a tocá-las aos 23 anos, encerrando uma série semimitológica de seis concertos em seis semanas em Nova York, com a obra completa para teclado de Bach. A gravação, recém-lançada, foi feita no ano passado: 66 anos depois da primeira interpretação.
Nas fartas notas que acompanham a partitura -disponível no CD, que funciona também como CD-ROM- Tureck escreve sobre as "potencialidades de materiais fundamentais limitados". Fazer muito com pouco, compor o infinito a partir de quase nada é a marca por excelência da música de Bach.
Seu princípio básico é o que os barrocos chamavam "invenção": não uma criação, no sentido moderno de origem ou novidade, mas sim no de uma elaboração das idéias musicais, segundo as normas do contraponto e as convenções de cada tipo de música.
E não há obra mais sistemática e ao mesmo tempo mais exuberante no tratamento da invenção do que as "Variações Goldberg" (compostas em 1741).
A partir de uma ária inicial simples, 32 compassos em sol maior, vão se desfiar 30 variações, abarcando desde cânones e fugas até danças, tocatas e formas imitativas e ornamentais mais livres.
O conjunto é organizado num padrão rigoroso: uma seqüência de três variações, em que as primeiras duas têm caráter variado, mas a terceira é sempre um cânone (em que uma das vozes imita exatamente outra).
O intervalo entre as duas vozes canônicas vai aumentando progressivamente, desde o uníssono até a nona. O ciclo de 32 peças se fecha e se abre de novo com a repetição da ária, "um dos momentos mais sublimes de toda a história da música", na opinião respeitável de Tureck.
Descrições formais não passam de descrições formais; e, nesse ponto, a própria Tureck é tão culpada quanto qualquer outro por não transcender a habilidade meramente descritiva da língua.
Suas notas escritas não sugerem virtualmente nada do que as notas tocadas oferecem com tanta eloquência: uma razão musical "inteiramente nova", o contraponto transformado numa outra geometria, ou sabedoria, para além do princípio da paixão.
Qualquer gravação das "Variações Goldberg" será comparada, na memória de todos, à de Glenn Gould (CBS, 1982/Sony, 1993), que se tornou, com ela, o seu virtual proprietário.
As diferenças só fazem enriquecer a audição de uma e outra. Gould toca Bach como um teatro-do-mundo, cada voz encenando suas falas no palco do teclado. O pulso se acelera ou desacelera, de variação a variação e dentro de cada uma -mesmo dentro de cada linha-, seguindo a pressão da melodia, que nesse caso é também a pressão dos afetos.
Já Tureck (admirada por Gould) mantém o pulso absolutamente igual do início ao fim da ária e das 30 variações, deixando todo o jogo do tempo por conta das alterações de metro, figura e acento indicadas na partitura, que ela segue com uma dedicação nas raias do escolástico.
Tamanha fidelidade ao texto escrito resulta, às vezes, em andamentos surpreendentes; mas o desconforto inicial sempre acaba cedendo às convicções da interpretação. O som de Tureck -aberto, honesto e entregue nas vozes superiores; impressionantemente ligado e velado, ou acentuado e firme, conforme o caso, no baixo- contribui muito para isso.
A assumida neutralidade de timbres do piano multiplica o efeito de uma arte que se apresenta, aqui, como mensagem das esferas. Não é o teatro humano do mundo em forma sonora; mas todo o universo de significados e sentimentos como que deixado para trás, ou visto de cima, da perspectiva da música.
Mesmo uma artista tão destituída de marcas de época não pode se livrar inteiramente delas; e haverá quem se incomode com o acento excessivo no primeiro tempo dos compassos, especialmente na voz do meio: uma primeira nota que se alonga bastante em relação às seguintes.
Ou, no extremo oposto, com a última nota, excessivamente curta, preparando a chegada do próximo compasso. A relação entre arte culta e dança popular fica sublinhada nesses apelos do ritmo, mas não necessariamente em benefício da visão maior da própria Tureck, que está longe desses maneirismos.
Não são minúcias, mas são elementos pequenos no contexto de uma interpretação que resiste exemplarmente à extravagância.
Mesmo os ornamentos, bem mais numerosos do que se poderia esperar, são um modelo de equilíbrio; mesmo o virtuosismo, que é a marca explícita de tantas variações, fica a serviço da "invenção", o senso profundo de metamorfose que rege a performance de Tureck como uma lei celeste, refletida apenas na glória terrena de compositores e artistas.
De uma pianista capaz de lançar uma gravação como essa aos 85 anos, não seria justo falar ainda em testamento musical, ou legado.
Sua contribuição à interpretação dos compositores românticos e contemporâneos, de quem ela foi igualmente uma grande expositora, parece definida e forma um capítulo digno em meio ao panorama nem sempre tranquilo da música do nosso tempo.
Mas o retorno de Tureck, pianista de Bach, sugere menos um fechamento do que uma nova abertura.
Assim como o retorno da ária, ao final das "Variações", essa volta de Tureck é ao mesmo tempo a confirmação de tudo o que já foi e uma intimação de novos segredos e possibilidades. Não é só Bach que ela nos ensina a ouvir com outros ouvidos. As lições de Tureck são ainda maiores e fazem, agora, de todos nós, parceiros voluntários de uma nova passagem, esperançosa e imprevisível, pelos ciclos da música e da imaginação.


Avaliação:



Disco: Variações Goldberg
Compositor: Johann Sebastian Bach
Intérprete: Rosalyn Tureck, piano
Lançamento: Deutsche Grammophon, 1999
Quanto: R$ 25 o CD, em média

E-mail: nestro@uol.com.br

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