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MÚSICA
Tureck mantém o pulso em "Variações"
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
Fama aos 18 anos, reconhecimento quase imediato, seguido de
uma carreira internacional e numerosas gravações, mais honrarias
acadêmicas; retiro voluntário em
Oxford, dedicação ao ensino e à
pesquisa, distância do mundo comercial da música, virtual esquecimento do público.
E agora, aos 85 anos, uma reentrada triunfal, aplaudida como
uma das maiores figuras musicais
do nosso tempo.
Esse resumo, muito abreviado,
poderia ser a trama de algum conto perdido de Henry James; mas
sintetiza a carreira real dessa pianista maravilhosa e estranha que é
Rosalyn Tureck.
Ao lado da cravista polonesa
Wanda Landowska (1877-1959) e
do pianista canadense Glenn
Gould (1932-82), a americana Tureck compõe um triunvirato de intérpretes modernos da música de
Bach.
Dos três, a cravista é paradoxalmente a mais romântica, no sentido comum da palavra: uma artista
de grandes sentimentos e grandes
liberdades.
Comparado a ela, Gould, por
mais idiossincrático, soa como um
estilista clássico, dedicado à pureza do desenho. Já Tureck é uma artista mais enigmática, para além
do mundo humano das formas,
elevada a um domínio impessoal
da música, um universo de contraponto e verdade, que ela chama de
"Bach".
"Pouco antes de completar 17
anos, tive uma experiência que
mudou minha vida", relata ela
num texto que acompanha seu novo disco, um CD duplo com as
"Variações Goldberg" de Bach
(gravadora Deutsche Grammophon).
"Tinha começado a trabalhar no
"Prelúdio e Fuga" em lá menor do
primeiro volume do "Cravo Bem
Temperado" quando, ao perceber
o que eram os materiais essenciais
da exposição, sofri um desmaio.
Fiquei desacordada não sei por
quanto tempo; quando voltei a
mim, tinha uma visão inteiramente nova da música de Bach... Um
modo inteiramente novo de conceber a forma e a estrutura musical."
Nem aqui, nem em qualquer outro texto (incluindo seu tratado em
três volumes, "Introduction to the
Performance of Bach"), Tureck
deixa claro o que vem a ser esse
modo novo de pensar a lógica musical barroca.
Nas notas que acompanham outro disco recente, com as "Partitas"
(na série "Great Pianists of the
Twentieth Century", da Philips
-primeiro responsável por sua
reconquistada celebridade), o musicólogo John Ardoin fala de "formas que emergem... como um grupo de células em desenvolvimento,
combinando-se a outros grupos
até que o todo resulte num organismo vivo". A analogia é instigante, mas não mais palpável.
Metáforas e símiles não ajudam
muito nesse caso; mas um compasso ouvido é o bastante para se
perceber a presença de uma inteligência musical distinta de qualquer outra.
E uma presença dessas não se
deixa traduzir pelas generalidades
da língua: não se deixa traduzir por
nada, embora faça de cada um de
nós o seu tradutor predestinado,
na língua interna do que não tem
palavras.
Foi um ano após o desmaio visionário que Tureck descobriu as
"Variações Goldberg". Em cinco
semanas, ela aprendeu e tocou de
memória os 90 minutos de música.
Voltaria a tocá-las aos 23 anos,
encerrando uma série semimitológica de seis concertos em seis semanas em Nova York, com a obra
completa para teclado de Bach. A
gravação, recém-lançada, foi feita
no ano passado: 66 anos depois da
primeira interpretação.
Nas fartas notas que acompanham a partitura -disponível no
CD, que funciona também como
CD-ROM- Tureck escreve sobre
as "potencialidades de materiais
fundamentais limitados". Fazer
muito com pouco, compor o infinito a partir de quase nada é a marca por excelência da música de
Bach.
Seu princípio básico é o que os
barrocos chamavam "invenção":
não uma criação, no sentido moderno de origem ou novidade, mas
sim no de uma elaboração das
idéias musicais, segundo as normas do contraponto e as convenções de cada tipo de música.
E não há obra mais sistemática e
ao mesmo tempo mais exuberante
no tratamento da invenção do que
as "Variações Goldberg" (compostas em 1741).
A partir de uma ária inicial simples, 32 compassos em sol maior,
vão se desfiar 30 variações, abarcando desde cânones e fugas até
danças, tocatas e formas imitativas
e ornamentais mais livres.
O conjunto é organizado num
padrão rigoroso: uma seqüência
de três variações, em que as primeiras duas têm caráter variado,
mas a terceira é sempre um cânone
(em que uma das vozes imita exatamente outra).
O intervalo entre as duas vozes
canônicas vai aumentando progressivamente, desde o uníssono
até a nona. O ciclo de 32 peças se fecha e se abre de novo com a repetição da ária, "um dos momentos
mais sublimes de toda a história da
música", na opinião respeitável de
Tureck.
Descrições formais não passam
de descrições formais; e, nesse
ponto, a própria Tureck é tão culpada quanto qualquer outro por
não transcender a habilidade meramente descritiva da língua.
Suas notas escritas não sugerem
virtualmente nada do que as notas
tocadas oferecem com tanta eloquência: uma razão musical "inteiramente nova", o contraponto
transformado numa outra geometria, ou sabedoria, para além do
princípio da paixão.
Qualquer gravação das "Variações Goldberg" será comparada,
na memória de todos, à de Glenn
Gould (CBS, 1982/Sony, 1993), que
se tornou, com ela, o seu virtual
proprietário.
As diferenças só fazem enriquecer a audição de uma e outra.
Gould toca Bach como um teatro-do-mundo, cada voz encenando
suas falas no palco do teclado. O
pulso se acelera ou desacelera, de
variação a variação e dentro de cada uma -mesmo dentro de cada
linha-, seguindo a pressão da
melodia, que nesse caso é também
a pressão dos afetos.
Já Tureck (admirada por Gould)
mantém o pulso absolutamente
igual do início ao fim da ária e das
30 variações, deixando todo o jogo
do tempo por conta das alterações
de metro, figura e acento indicadas
na partitura, que ela segue com
uma dedicação nas raias do escolástico.
Tamanha fidelidade ao texto escrito resulta, às vezes, em andamentos surpreendentes; mas o
desconforto inicial sempre acaba
cedendo às convicções da interpretação. O som de Tureck -aberto,
honesto e entregue nas vozes superiores; impressionantemente ligado e velado, ou acentuado e firme,
conforme o caso, no baixo- contribui muito para isso.
A assumida neutralidade de timbres do piano multiplica o efeito de
uma arte que se apresenta, aqui,
como mensagem das esferas. Não é
o teatro humano do mundo em
forma sonora; mas todo o universo
de significados e sentimentos como que deixado para trás, ou visto
de cima, da perspectiva da música.
Mesmo uma artista tão destituída de marcas de época não pode se
livrar inteiramente delas; e haverá
quem se incomode com o acento
excessivo no primeiro tempo dos
compassos, especialmente na voz
do meio: uma primeira nota que se
alonga bastante em relação às seguintes.
Ou, no extremo oposto, com a última nota, excessivamente curta,
preparando a chegada do próximo
compasso. A relação entre arte culta e dança popular fica sublinhada
nesses apelos do ritmo, mas não
necessariamente em benefício da
visão maior da própria Tureck,
que está longe desses maneirismos.
Não são minúcias, mas são elementos pequenos no contexto de
uma interpretação que resiste
exemplarmente à extravagância.
Mesmo os ornamentos, bem
mais numerosos do que se poderia
esperar, são um modelo de equilíbrio; mesmo o virtuosismo, que é a
marca explícita de tantas variações, fica a serviço da "invenção",
o senso profundo de metamorfose
que rege a performance de Tureck
como uma lei celeste, refletida apenas na glória terrena de compositores e artistas.
De uma pianista capaz de lançar
uma gravação como essa aos 85
anos, não seria justo falar ainda em
testamento musical, ou legado.
Sua contribuição à interpretação
dos compositores românticos e
contemporâneos, de quem ela foi
igualmente uma grande expositora, parece definida e forma um capítulo digno em meio ao panorama nem sempre tranquilo da música do nosso tempo.
Mas o retorno de Tureck, pianista de Bach, sugere menos um fechamento do que uma nova abertura.
Assim como o retorno da ária, ao
final das "Variações", essa volta de
Tureck é ao mesmo tempo a confirmação de tudo o que já foi e uma
intimação de novos segredos e
possibilidades. Não é só Bach que
ela nos ensina a ouvir com outros
ouvidos. As lições de Tureck são
ainda maiores e fazem, agora, de
todos nós, parceiros voluntários
de uma nova passagem, esperançosa e imprevisível, pelos ciclos da
música e da imaginação.
Avaliação:
Disco: Variações Goldberg
Compositor: Johann Sebastian Bach
Intérprete: Rosalyn Tureck, piano
Lançamento: Deutsche Grammophon,
1999
Quanto: R$ 25 o CD, em média
E-mail: nestro@uol.com.br
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