São Paulo, sexta-feira, 26 de maio de 2006

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O filho dos Darnenne

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Atores-mirins assombram os filmes muito antes de Shirley Temple e Mickey Rooney terem mesmo chorado na sala de parto. Entretanto, o mesmo cinema que os transforma em celebridades da noite para o dia, os abandona quando crescem e, depois de adultos, eles se perdem na poeira do tempo.
O belga Jérémie Renier teve uma sorte diferente. Depois de estrear aos 14 anos em "La Promesse", o primeiro longa de ficção dos irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne, ele retorna, já adulto, ao universo doloroso da dupla belga.
Sobre a primeira experiência, Renier recorda que "tinha 14 anos na época e era um completo idiota. Naquela situação, eu aprendi o que significa fazer cinema. Desde o início, Luc e Jean-Pierre me estimularam a representar de um modo natural, a abordar o personagem de um modo corporal. Eles são bastante exigentes, exigem do ator dedicação total ao personagem e à história, e eu aprendi bastante com esse rigor".
Surpreendente para Renier foi o convite para protagonizar "O Filho", quarto filme na carreira de impacto da dupla belga, que já deu a eles, em seis anos, uma segunda Palma de Ouro em Cannes (em 2005).
"Eu não imaginava que pudesse voltar a trabalhar com eles. Mas um dia Jean-Pierre me ligou em Paris e disse que gostaria de me rever. Eu pensei que era apenas um amigo querendo retomar um laço perdido. Marcamos de eu ir a Bruxelas e, assim que nos vimos, os dois se puseram a falar de um novo projeto e que gostariam que eu participasse como protagonista. A essa altura eu caí das nuvens. Tive um misto de alegria e de temor. Fiquei feliz pelo convite, mas temeroso de não estar à altura. Eu sei a importância que La Promesse teve na minha carreira, mas nunca tive certeza de que era suficientemente bom para o papel difícil de Bruno."
Esse tipo de dificuldade, segundo Renier, não passa pelo fato de serem dois diretores e acima de tudo por eles serem irmãos. "Os dois trabalham como se fossem dois corpos e uma só cabeça. Mesmo quando um está próximo dos atores enquanto o outro acompanha a cena no monitor de vídeo eles são um só. Eu nunca testemunhei nenhum conflito de opinião entre eles, sempre uma cumplicidade maluca", revela.
Já a impressão documental e de certo improviso que emana das situações filmadas pela dupla belga é resultado, de fato, não tem origem em nenhum tipo de liberdade concedida ao acaso durante as filmagens. Segundo o jovem ator, "não há espaço para improvisação. Ensaiamos cerca de um mês e meio antes de filmar, freqüentamos as locações e os cenários, fazemos os testes de figurinos. É nessa fase que eles nos levam a buscar e a encontrar o personagem, a integrar algo pessoal à situação. Nada é improvisado durante as filmagens. O roteiro é seguido à risca. Apesar da aparência de ações em aberto, tudo já está absolutamente escrito e previsto".
Sobre seu personagem, o antipático papel de Bruno, um jovem delinqüente que vê em tudo e todos apenas meios de satisfação de sua ganância, Renier guarda uma impressão ambígua. "Eu acho que Bruno é tanto vitima como irresponsável. Ele é imaturo para ser responsável e, ao mesmo tempo, é vítima de um capitalismo que transforma não apenas as coisas em mercadorias, mas tudo mais, as pessoas, os afetos etc. Ele só entende a palavra valor como sinônimo de dinheiro e isso não é um defeito pessoal do personagem, é algo em que ele é transformado. Por isso, acho que o título "A Criança" refere-se não só ao bebê, mas em particular à criança que Bruno também é. Isso faz dele, num certo ponto, um inocente", reflete.


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