São Paulo, sábado, 26 de maio de 2007

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Livros

"Estado distante é sorte do Ocidente"

Escritor britânico avalia a experiência soviética como episódio mais terrível e dinâmico da história da humanidade

Martin Amis diz que escrever sobre o gulag morando numa praia fez com que tivesse medo de não atingir legitimidade


DA REPORTAGEM LOCAL

Nem tudo foi tranqüilidade nas férias de verão prolongadas de Martin Amis no Uruguai. O escritor, cuja fama de polemista vem de longa data, tem feito ataques cada vez mais duros ao extremismo islâmico, desde o 11 de Setembro. E por isso tem sido bastante criticado.
"Horrorismo" é o termo que usa para descrever o terrorismo hoje. Em setembro do ano passado, no quinto aniversário dos atentados, Amis publicou um artigo no jornal britânico "The Observer", no qual cobrava uma postura mais dura do Ocidente com relação ao fundamentalismo.
Agora, com "Casa de Encontros", Amis faz enfim as pazes com a literatura e com o sucesso de seus romances do passado, como "Campos de Londres" (Rocco) e "A Informação" (Companhia das Letras).
Afinal, sua novela anterior, "Yellow Dog" (2003), havia sido destruída pela crítica e foi um fracasso junto ao público, enquanto "Casa" tem colecionado resenhas favoráveis. Leia abaixo os principais trechos da entrevista que Amis concedeu à Folha, por telefone, de Londres. (SYLVIA COLOMBO)

 

FOLHA - Você já havia escrito sobre a ex-União Soviética em "Koba The Dread" [de 2002, sem tradução aqui], que era um ensaio político. Há diálogo entre ambos?
MARTIN AMIS -
Sim, ainda que eu não tivesse idéia de que escreveria "Casa de Encontros" enquanto trabalhava em "Koba". É comum, quando escrevo um ensaio ou um artigo para jornal, que, depois de alguns anos, algo sobre eles volte a me chamar a atenção. Parece que alguma coisa fica depositada no meu inconsciente. E é do inconsciente que vêm os romances. A partir desse momento, não é mais a mente discursiva que atua, mas a mente subliminar. De repente, você se dá conta de que tem mais a dizer sobre aquele assunto sobre o qual refletiu no passado. Mas que isso só pode ser dito num romance.

FOLHA - E por que tanto interesse pela experiência soviética?
AMIS -
Porque trata-se do período histórico mais eletrizante que houve. Não consigo pensar em nada mais terrível, dinâmico e, ao mesmo tempo, distanciado do resto do planeta. A história de "Casa dos Encontros" insere-se nessa minha impressão. Mas o enredo, especificamente, começou a tomar forma quando li "Gulag: a History", de Anne Applebaum, que descreve a existência dessa espécie de instituição nos gulags, a casa para visitas íntimas. Nada me parecia tão trágico e ao mesmo tempo tão estranho. O fato de existirem encontros conjugais nos campos. Imaginei que seria um bom ponto de partida para um romance.

FOLHA - Você foi à Rússia fazer pesquisas para o livro?
AMIS -
Não. Pensei em ir no começo, mas então me dei conta de que teria impressões nessa viagem que poderiam entrar em conflito com o que já estava arquitetando para o romance.

FOLHA - A idéia de que a história determina o destino dos homens está por trás de toda literatura. Aqui isso parece ainda mais latente, por se tratar de uma situação extrema, dois irmãos vivendo um drama amoroso e, ao mesmo tempo, os horrores do gulag. Você concorda?
AMIS -
Sim. É importante ressaltarmos que, aqui no Ocidente, somos muito afortunados pelo fato de o Estado guardar distância de nossas vidas íntimas. Mas essa certamente não era a realidade na União Soviética daquela época. Aquilo foi algo terrível. Imagino a sensação constante que as pessoas tinham de que o Estado entrava em seus nervos, seu coração e sua alma. Não tenho dúvidas de que se tinha realmente a sensação de se estar vivendo na história.

FOLHA - Por que você preferiu chamar Stálin, Brejnev e Lênin por seus primeiros nomes, Iossif Vissariónovitch, Leonid Ilyich, Vladimir Ilyich?
AMIS -
Me pareceu errado que o narrador se referisse a eles pelo sobrenome, pelo modo como eles ficaram mais conhecidos ao longo do tempo. Na época, o nome cristão era o modo formal de se referir a alguém. Usar apenas o sobrenome era a maneira informal, mais casual. E o protagonista, que é um homem idoso, nos dias de hoje, lembrando dos tempos do gulag, é uma pessoa que deseja ansiosamente ver-se distante desses gigantes da história.

FOLHA - O estupro está na construção do protagonista e no momento em que o livro ganha real intensidade. É o amor nos tempos de guerra?
AMIS -
Eu já tinha definido o personagem como um estuprador quando o descrevi como ex-herói de guerra, como soldado de um exército que arrasara um outro país. Depois, me dei conta de que a trama também deveria acabar assim. É verdade que se trata de algo que escurece a história. Mas pensei : "Os personagens são russos. E essa é a terra de Dostoiévski".

FOLHA - Mas o que isso significa?
AMIS -
Essencialmente, que as pessoas não se comportam de um modo que nós, no Ocidente, acharíamos inteligível. Os russos são por natureza seres com as almas convulsionadas.

FOLHA - Você costuma dizer que seus romances são sobre a crise da masculinidade. Contar a relação desses irmãos numa situação tão radical o ajudou a refletir sobre isso?
AMIS -
Sim. A masculinidade sempre foi o eixo do que escrevo. O orgulho masculino é uma grande fonte de violência, ao mesmo tempo de transformação. Quero entender como aquelas coisas que são tidas como qualidades masculinas, por exemplo, a brutalidade, nos trouxeram muitos problemas ao longo da história.

FOLHA - Em entrevista recente, você disse que a solução para o extremismo islâmico era incrementar a consciência das mulheres. O fundamentalismo é uma questão antes de tudo de fundo sexual?
AMIS -
O componente sexual é essencial. Quando ando nas ruas de Londres e passo por mulheres cobertas, penso: "Por que tamanho alarmismo com relação a mulheres?" Isso diz muito sobre o homem. Pensar no medo desses que acham que, apenas por ver um pedaço das mulheres, podem ser levados a enlouquecer. É um modo de fetichizar todos os aspectos de uma relação normal entre homem e mulher. O que os extremistas islâmicos mais odeiam sobre a modernidade é a igualdade sexual das mulheres. É seu último bastião, a última fortaleza. A impressão que tenho com relação ao fundamentalismo islâmico é que algo deu muito errado há muito tempo. O Alcorão e Maomé são freqüentemente liberais com as mulheres. Só que então tudo fracassou. E o modo como as convenções foram fossilizadas mostra que é impossível que voltemos a ver uma atitude sã diante dessa questão.

FOLHA - Como foi escrever sobre a União Soviética morando numa praia, no Uruguai?
AMIS -
Difícil, porque eu vivia numa bela casa, com minha mulher e filhas. Sem estresse. Os uruguaios são educados e generosos. Era embaraçoso escrever sobre algo tão terrível como a vida no gulag em circunstâncias tão prazerosas. Sofri numa luta para dar legitimidade à experiência e aos sentimentos que queria relatar. A idéia de que o romance poderia não parecer legítimo começou a me atormentar, e me fez trabalhar duro, estudar mais.

FOLHA - Você viajou por outros países da América Latina? Que comparações faz com o Uruguai?
AMIS -
Fui a Brasil, Colômbia, Chile, Argentina, Cuba e México e achei tudo fascinante. Mas o que mais impressionou foi o próprio Uruguai, pelo fato de ser um país tão civilizado, quando a temperatura no resto do continente é bem mais alta.


CASA DE ENCONTROS
Autor:
Martin Amis
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39,50 (238 págs.)


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