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Livros
"Estado distante é sorte do Ocidente"
Escritor britânico avalia a experiência soviética como episódio mais terrível e dinâmico da história da humanidade
Martin Amis diz que escrever sobre o gulag morando numa praia fez com que tivesse medo de não atingir legitimidade
DA REPORTAGEM LOCAL
Nem tudo foi tranqüilidade
nas férias de verão prolongadas
de Martin Amis no Uruguai. O
escritor, cuja fama de polemista vem de longa data, tem feito
ataques cada vez mais duros ao
extremismo islâmico, desde o
11 de Setembro. E por isso tem
sido bastante criticado.
"Horrorismo" é o termo que
usa para descrever o terrorismo hoje. Em setembro do ano
passado, no quinto aniversário
dos atentados, Amis publicou
um artigo no jornal britânico
"The Observer", no qual cobrava uma postura mais dura do
Ocidente com relação ao fundamentalismo.
Agora, com "Casa de Encontros", Amis faz enfim as pazes
com a literatura e com o sucesso de seus romances do passado, como "Campos de Londres"
(Rocco) e "A Informação"
(Companhia das Letras).
Afinal, sua novela anterior,
"Yellow Dog" (2003), havia sido destruída pela crítica e foi
um fracasso junto ao público,
enquanto "Casa" tem colecionado resenhas favoráveis.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista que Amis
concedeu à Folha, por telefone, de Londres.
(SYLVIA COLOMBO)
FOLHA - Você já havia escrito sobre
a ex-União Soviética em "Koba The
Dread" [de 2002, sem tradução
aqui], que era um ensaio político. Há
diálogo entre ambos?
MARTIN AMIS - Sim, ainda que eu
não tivesse idéia de que escreveria "Casa de Encontros" enquanto trabalhava em "Koba".
É comum, quando escrevo um
ensaio ou um artigo para jornal,
que, depois de alguns anos, algo
sobre eles volte a me chamar a
atenção. Parece que alguma
coisa fica depositada no meu
inconsciente. E é do inconsciente que vêm os romances.
A partir desse momento, não
é mais a mente discursiva que
atua, mas a mente subliminar.
De repente, você se dá conta de
que tem mais a dizer sobre
aquele assunto sobre o qual refletiu no passado. Mas que isso
só pode ser dito num romance.
FOLHA - E por que tanto interesse
pela experiência soviética?
AMIS - Porque trata-se do período histórico mais eletrizante
que houve. Não consigo pensar
em nada mais terrível, dinâmico e, ao mesmo tempo, distanciado do resto do planeta.
A história de "Casa dos Encontros" insere-se nessa minha
impressão. Mas o enredo, especificamente, começou a tomar
forma quando li "Gulag: a History", de Anne Applebaum, que
descreve a existência dessa espécie de instituição nos gulags,
a casa para visitas íntimas.
Nada me parecia tão trágico e
ao mesmo tempo tão estranho.
O fato de existirem encontros
conjugais nos campos. Imaginei que seria um bom ponto de
partida para um romance.
FOLHA - Você foi à Rússia fazer pesquisas para o livro?
AMIS - Não. Pensei em ir no começo, mas então me dei conta
de que teria impressões nessa
viagem que poderiam entrar
em conflito com o que já estava
arquitetando para o romance.
FOLHA - A idéia de que a história
determina o destino dos homens está por trás de toda literatura. Aqui isso parece ainda mais latente, por se
tratar de uma situação extrema,
dois irmãos vivendo um drama
amoroso e, ao mesmo tempo, os
horrores do gulag. Você concorda?
AMIS - Sim. É importante ressaltarmos que, aqui no Ocidente, somos muito afortunados
pelo fato de o Estado guardar
distância de nossas vidas íntimas. Mas essa certamente não
era a realidade na União Soviética daquela época.
Aquilo foi algo terrível. Imagino a sensação constante que
as pessoas tinham de que o Estado entrava em seus nervos,
seu coração e sua alma.
Não tenho dúvidas de que se
tinha realmente a sensação de
se estar vivendo na história.
FOLHA - Por que você preferiu chamar Stálin, Brejnev e Lênin por seus
primeiros nomes, Iossif Vissariónovitch, Leonid Ilyich, Vladimir Ilyich?
AMIS - Me pareceu errado que
o narrador se referisse a eles
pelo sobrenome, pelo modo como eles ficaram mais conhecidos ao longo do tempo. Na época, o nome cristão era o modo
formal de se referir a alguém.
Usar apenas o sobrenome era a
maneira informal, mais casual.
E o protagonista, que é um
homem idoso, nos dias de hoje,
lembrando dos tempos do gulag, é uma pessoa que deseja ansiosamente ver-se distante desses gigantes da história.
FOLHA - O estupro está na construção do protagonista e no momento
em que o livro ganha real intensidade. É o amor nos tempos de guerra?
AMIS - Eu já tinha definido o
personagem como um estuprador quando o descrevi como ex-herói de guerra, como soldado
de um exército que arrasara um
outro país. Depois, me dei conta de que a trama também deveria acabar assim. É verdade
que se trata de algo que escurece a história. Mas pensei : "Os
personagens são russos. E essa
é a terra de Dostoiévski".
FOLHA - Mas o que isso significa?
AMIS - Essencialmente, que as
pessoas não se comportam de
um modo que nós, no Ocidente,
acharíamos inteligível. Os russos são por natureza seres com
as almas convulsionadas.
FOLHA - Você costuma dizer que
seus romances são sobre a crise da
masculinidade. Contar a relação
desses irmãos numa situação tão radical o ajudou a refletir sobre isso?
AMIS - Sim. A masculinidade
sempre foi o eixo do que escrevo. O orgulho masculino é uma
grande fonte de violência, ao
mesmo tempo de transformação. Quero entender como
aquelas coisas que são tidas como qualidades masculinas, por
exemplo, a brutalidade, nos
trouxeram muitos problemas
ao longo da história.
FOLHA - Em entrevista recente, você disse que a solução para o extremismo islâmico era incrementar a
consciência das mulheres. O fundamentalismo é uma questão antes de
tudo de fundo sexual?
AMIS - O componente sexual é
essencial. Quando ando nas
ruas de Londres e passo por
mulheres cobertas, penso: "Por
que tamanho alarmismo com
relação a mulheres?"
Isso diz muito sobre o homem. Pensar no medo desses
que acham que, apenas por ver
um pedaço das mulheres, podem ser levados a enlouquecer.
É um modo de fetichizar todos
os aspectos de uma relação normal entre homem e mulher.
O que os extremistas islâmicos mais odeiam sobre a modernidade é a igualdade sexual
das mulheres. É seu último bastião, a última fortaleza.
A impressão que tenho com
relação ao fundamentalismo islâmico é que algo deu muito errado há muito tempo.
O Alcorão e Maomé são freqüentemente liberais com as
mulheres. Só que então tudo
fracassou. E o modo como as
convenções foram fossilizadas
mostra que é impossível que
voltemos a ver uma atitude sã
diante dessa questão.
FOLHA - Como foi escrever sobre a
União Soviética morando numa
praia, no Uruguai?
AMIS - Difícil, porque eu vivia
numa bela casa, com minha
mulher e filhas. Sem estresse.
Os uruguaios são educados e
generosos. Era embaraçoso escrever sobre algo tão terrível
como a vida no gulag em circunstâncias tão prazerosas.
Sofri numa luta para dar legitimidade à experiência e aos
sentimentos que queria relatar.
A idéia de que o romance poderia não parecer legítimo começou a me atormentar, e me fez
trabalhar duro, estudar mais.
FOLHA - Você viajou por outros países da América Latina? Que comparações faz com o Uruguai?
AMIS - Fui a Brasil, Colômbia,
Chile, Argentina, Cuba e México e achei tudo fascinante. Mas
o que mais impressionou foi o
próprio Uruguai, pelo fato de
ser um país tão civilizado,
quando a temperatura no resto
do continente é bem mais alta.
CASA DE ENCONTROS
Autor: Martin Amis
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39,50 (238 págs.)
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