São Paulo, Quarta-feira, 26 de Maio de 1999
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MARCELO COELHO
Cinema brasileiro reconhece antigos problemas

Pode ser simples coincidência. Mas dois filmes atualmente em cartaz -"Um Copo de Cólera", de Aluizio Abranches, e "Outras Histórias", de Pedro Bial- adaptam textos de grandes autores brasileiros sem fazer concessão nenhuma à linguagem coloquial, à famosa "naturalidade" que estamos habituados a esperar de um filme razoavelmente bem-feito.
A retórica destemperada, as altas injúrias do texto de Raduan Nassar são transcritas sem alteração em "Um Copo de Cólera". A estranheza da linguagem de Guimarães Rosa é preservada, linha por linha, na fala de "Outras Histórias".
O que isso significa? Antes de mais nada, o reconhecimento de antigos problemas do cinema brasileiro: sempre tivemos falta de roteiristas, a técnica do diálogo costumava ser bem pobre, e a direção de atores muitas vezes parecia inexistente.
O resultado é que, frequentemente, histórias com registro realista surgiam desde as primeiras cenas com um ar forçado, sem fluência, quase como se a fala e as próprias imagens estivessem sendo "dubladas" de algum original a que não tivemos acesso.
Estou generalizando, claro. Muitos filmes brasileiros sabem evitar esses defeitos. Ou porque simplesmente são bem-cuidados, como "Central do Brasil", ou porque recorrem à paródia, ou ainda porque se valem das técnicas hiperrealistas do teatro de besteirol, ou até porque se contentam com o vai-não-vai fraseológico das novelas de TV.
Mas a opção pelo texto literário puro, sem diluições, não corresponde nestes dois filmes a um recurso irônico, a uma "esperteza" dos diretores. O espectador pode aceitar ou não a "antinaturalidade" e o peso literário dos filmes, mas o jogo foi feito às claras: é pegar ou largar.
"Um Copo de Cólera" e "Outras Histórias" apostam, sem dúvida, num espectador diferenciado, de repertório mais exigente. Mas não se apresentam como filmes difíceis, de "vanguarda", marginais, contestatários. A opção pelo texto literário explica-se, assim, não como uma ruptura com o cinema comercial e suas convenções de naturalidade, mas como um investimento naquilo que poderíamos chamar de "classicidade".
Não digo "clássico" ou "classicismo", que seriam termos para designar um estilo, uma linguagem; uso "classicidade" para designar uma atitude, um tipo de relação com a tradição cultural erudita. Se o espectador não entender tudo, se muitas falas forem difíceis, não faz mal. Perdeu-se o complexo de que cinema tem de ser coisa digerível, ao mesmo tempo em que se abandona a idéia de que um filme difícil de digerir tem necessariamente de ser intragável.
Essas considerações são em certa medida externas às realizações de Aluizio Abranches e Pedro Bial. O que me parece interessante, contudo, é que a transposição direta da página escrita para a fala dos personagens tem um sentido, um motivo específico em cada filme.
No caso de "Um Copo de Cólera", não é apenas divertido, bizarro, o espetáculo de insultos que vemos encenado na tela. De certo modo, o teor literário das falas aponta para o que há de jogo, de irreal, de estratégia de sedução no casal que briga sem parar. Tanto que vemos Alexandre Borges e Júlia Lemmertz comentando, para as câmeras, a própria atuação. O filme não traz uma atuação estranha dos personagens, mas a atuação de uma atuação -como se macheza e feminilidade fossem, em si mesmas, farsas em que é divertido (e doloroso) acreditar.
O uso do texto de Guimarães Rosa em "Outras Histórias" é muito imaginativo; por vezes, as frases são ditas como num coral, outras vezes há narração em "off", ou então o personagem está escrevendo um texto, outras vezes simplesmente fala "roseanamente".
O efeito que se obtém é tudo, menos "estranho". Ou melhor, a estranheza faz parte do próprio enredo, e o que soa estranho no filme já soava estranho no próprio texto do autor.
Para resumir violentamente as coisas: a linguagem de Guimarães Rosa como que encena o choque do erudito com o rústico, do "esclarecido" com o arcaico. E, em suas histórias, o "sertão" aparece quase em um limite extremo, uma ameaça de regressão ao incomunicável, de virtual dissolução da sociedade.
Os riscos da loucura, da animalidade, da contaminação hereditária -temas típicos do naturalismo literário, aliás- aparecem, respectivamente, em "Soroco", "Os Irmãos Dagobé" e "Substância". Os riscos são exorcizados, mas numa estratégia precária, de duplo gume: a incompreensibilidade da linguagem culta e a incompreensibilidade do falar sertanejo se misturam. O tema é tratado explicitamente em "Famigerado".
Essa mistura, que põe em xeque o poder do urbano sobre o rural, e que faz o rústico perder terreno diante do "civilizado", como que se reduplica no cinema. A ambiguidade do texto de Guimarães Rosa se transforma, com grande beleza, num filme que é também literatura.


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