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MARCELO COELHO
Cinema brasileiro reconhece antigos problemas
Pode ser simples coincidência.
Mas dois filmes atualmente em
cartaz -"Um Copo de Cólera",
de Aluizio Abranches, e "Outras Histórias", de Pedro
Bial- adaptam textos de
grandes autores brasileiros sem
fazer concessão nenhuma à linguagem coloquial, à famosa
"naturalidade" que estamos
habituados a esperar de um filme razoavelmente bem-feito.
A retórica destemperada, as
altas injúrias do texto de Raduan Nassar são transcritas
sem alteração em "Um Copo de
Cólera". A estranheza da linguagem de Guimarães Rosa é
preservada, linha por linha, na
fala de "Outras Histórias".
O que isso significa? Antes de
mais nada, o reconhecimento
de antigos problemas do cinema brasileiro: sempre tivemos
falta de roteiristas, a técnica do
diálogo costumava ser bem pobre, e a direção de atores muitas vezes parecia inexistente.
O resultado é que, frequentemente, histórias com registro
realista surgiam desde as primeiras cenas com um ar forçado, sem fluência, quase como se
a fala e as próprias imagens estivessem sendo "dubladas" de
algum original a que não tivemos acesso.
Estou generalizando, claro.
Muitos filmes brasileiros sabem evitar esses defeitos. Ou
porque simplesmente são bem-cuidados, como "Central do
Brasil", ou porque recorrem à
paródia, ou ainda porque se
valem das técnicas hiperrealistas do teatro de besteirol, ou
até porque se contentam com o
vai-não-vai fraseológico das
novelas de TV.
Mas a opção pelo texto literário puro, sem diluições, não
corresponde nestes dois filmes
a um recurso irônico, a uma
"esperteza" dos diretores. O espectador pode aceitar ou não a
"antinaturalidade" e o peso literário dos filmes, mas o jogo
foi feito às claras: é pegar ou
largar.
"Um Copo de Cólera" e "Outras Histórias" apostam, sem
dúvida, num espectador diferenciado, de repertório mais
exigente. Mas não se apresentam como filmes difíceis, de
"vanguarda", marginais, contestatários. A opção pelo texto
literário explica-se, assim, não
como uma ruptura com o cinema comercial e suas convenções de naturalidade, mas como um investimento naquilo
que poderíamos chamar de
"classicidade".
Não digo "clássico" ou "classicismo", que seriam termos
para designar um estilo, uma
linguagem; uso "classicidade"
para designar uma atitude, um
tipo de relação com a tradição
cultural erudita. Se o espectador não entender tudo, se muitas falas forem difíceis, não faz
mal. Perdeu-se o complexo de
que cinema tem de ser coisa digerível, ao mesmo tempo em
que se abandona a idéia de que
um filme difícil de digerir tem
necessariamente de ser intragável.
Essas considerações são em
certa medida externas às realizações de Aluizio Abranches e
Pedro Bial. O que me parece interessante, contudo, é que a
transposição direta da página
escrita para a fala dos personagens tem um sentido, um motivo específico em cada filme.
No caso de "Um Copo de Cólera", não é apenas divertido,
bizarro, o espetáculo de insultos que vemos encenado na tela. De certo modo, o teor literário das falas aponta para o que
há de jogo, de irreal, de estratégia de sedução no casal que briga sem parar. Tanto que vemos
Alexandre Borges e Júlia Lemmertz comentando, para as câmeras, a própria atuação. O filme não traz uma atuação estranha dos personagens, mas a
atuação de uma atuação -como se macheza e feminilidade
fossem, em si mesmas, farsas
em que é divertido (e doloroso)
acreditar.
O uso do texto de Guimarães
Rosa em "Outras Histórias" é
muito imaginativo; por vezes,
as frases são ditas como num
coral, outras vezes há narração
em "off", ou então o personagem está escrevendo um texto,
outras vezes simplesmente fala
"roseanamente".
O efeito que se obtém é tudo,
menos "estranho". Ou melhor,
a estranheza faz parte do próprio enredo, e o que soa estranho no filme já soava estranho
no próprio texto do autor.
Para resumir violentamente
as coisas: a linguagem de Guimarães Rosa como que encena
o choque do erudito com o rústico, do "esclarecido" com o arcaico. E, em suas histórias, o
"sertão" aparece quase em um
limite extremo, uma ameaça
de regressão ao incomunicável, de virtual dissolução da
sociedade.
Os riscos da loucura, da animalidade, da contaminação
hereditária -temas típicos do
naturalismo literário, aliás-
aparecem, respectivamente,
em "Soroco", "Os Irmãos Dagobé" e "Substância". Os riscos
são exorcizados, mas numa estratégia precária, de duplo gume: a incompreensibilidade da
linguagem culta e a incompreensibilidade do falar sertanejo se misturam. O tema é
tratado explicitamente em
"Famigerado".
Essa mistura, que põe em xeque o poder do urbano sobre o
rural, e que faz o rústico perder
terreno diante do "civilizado",
como que se reduplica no cinema. A ambiguidade do texto
de Guimarães Rosa se transforma, com grande beleza,
num filme que é também literatura.
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