|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O romance jornalístico da história
DA REDAÇÃO
O conjunto da obra está
destinado a se tornar o que
se chamaria de "referência obrigatória" na historiografia da ditadura militar brasileira. Impressionam a quantidade e a qualidade
das informações, não apenas pelo
ineditismo do material colhido
dos arquivos do general Golbery e
das "longas, pacientes e sinceras"
entrevistas concedidas por ele e
pelo presidente Geisel ao autor,
mas também pela maneira como
se reconstituem episódios a partir
do reprocessamento de versões
extraídas de recortes da imprensa
e fontes bibliográficas.
Todas as virtudes do jornalista
Elio Gaspari -que não são poucas e têm marca autoral- comparecem no livro: a apuração
exaustiva, o engenho no ordenamento dos fatos e o estilo.
É disso, afinal, que se trata: um
trabalho no qual o olhar e a faina
do repórter, do editor e do redator
de mão cheia se impõem. Não se
espere, portanto, ao longo da leitura a visita do historiador-sociólogo ausente dos volumes anteriores. Na história de Gaspari contam menos os grandes processos
e os movimentos estruturais do
que as personalidades, com seus
traços de caráter, seus humores,
suas audácias e fraquezas.
Contam mais, também, a inclinação pelo caso fechado a pano
rápido, o gosto por pequenos e
significativos episódios, o prazer
pelo anedótico e a paixão pela
personagem. De certa forma, Gaspari comporta-se diante da história como quem deseja escrever-lhe um romance. Ao romanceá-la, no entanto, não o faz à moda
dos que embaralham realidade e
ficção. Jornalista, mantém-se fiel
às fontes, de modo que a mão do
escritor aparece na concepção, na
costura e no feitio.
Como das vezes anteriores, há
uma seleção vocabular característica e uma afeição peculiar pela
frase. Nada mais "gaspariano",
por exemplo, do que descrever o
general Délio Jardim de Mattos
como um homem calmo e irreverente que "passava pelas crises como se elas fossem coquetéis". Ou
não resistir a destacar a sentença
do ministro Mario Henrique Simonsen, segundo a qual "o poder
é tão embriagador que passei a
considerar o uísque supérfluo".
Em "A Ditadura Encurralada",
como em todo velho e bom romance, há um conflito central. De
um lado temos os generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva; de outro, o ministro do Exército Sylvio Frota. Geisel e Golbery
defendem, da trincheira da Presidência, a distensão política. Frota
comanda o que Gaspari chama de
"anarquia militar".
É o duelo do poder palaciano e
do ordenamento institucional
contra a autonomia do porão e a
cegueira extremista; o embate entre a perspectiva de redemocratização e o caminho de volta às trevas. A armadilha está armada: os
primeiros irão representar o bem,
e o segundo, o mal.
Certamente, Elio Gaspari apresenta fatos que matizam o conflito
e servem para contornar o risco
do maniqueísmo. Lembrará
-como já fizera em outras ocasiões- o impressionante currículo de conspirador de Geisel, o
fato de que o general alinhou com
a tortura e a morte de prisioneiros
políticos, além de não nutrir nenhuma simpatia pelo que se entende por democracia. Ainda assim, faz-nos torcer pelo funéreo
personagem.
Há um Geisel de Gaspari. Pesa a
seu favor o fato de o seu perfil
emergir de contatos diretos e das
impressões colhidas do convívio
com seu círculo pessoal. O autor
teve condições incomuns para
formar um juízo a respeito de seu
personagem e da maneira como
deveria construí-lo. Mesmo assim
parece um pouco demais enfeitá-lo como representante do "poder
republicano" ou da "autoridade
constitucional" em antagonismo
com a insubordinação militar.
Naquele Brasil, Constituição e República ou eram um sonho ou entes ficcionais.
Não obstante, havia o conflito.
Esgrimavam a extrema-direita de
Frota e seus cães de guarda e a direita austera do ditador de plantão e seu astuto chefe do Gabinete
Civil. Gaspari reconstitui as trajetórias da previsível colisão de maneira admirável, ora fechando o
foco e congelando a cena sobre
determinados fatos, ora restaurando as seqüências ou emoldurando a trama na paisagem mais
ampla dos acontecimentos nacionais e internacionais.
Uma das facetas do livro mais
caras ao autor é a que se refere à
Geração 77, à maneira como ela
foi percebida pelos órgãos de segurança e ao papel que desempenhou na reformulação do campo
das esquerdas -contribuindo
para desalojar o Partidão de sua
velha hegemonia.
Aqui, curiosamente, se rompe o
diapasão. Se ao longo da narrativa
predomina a minúcia factual, nas
páginas dedicadas à "garotada"
que sai às ruas após o "Pacote de
Abril", o trabalho interpretativo
se sobrepõe ao descritivo. Encolhem a extensão e a profundidade
dos detalhes (os personagens da
época certamente encontrarão lacunas e nem sempre estarão de
acordo com o que se relata) e cresce a perspectiva conceitual acerca
do fenômeno. O essencial predomina sobre o acidental. E fica
aberta a trilha para que novas incursões a desbravem.
(MAG)
Texto Anterior: "A ditadura Encurralada": A última cartada Próximo Texto: Mônica Bergamo Índice
|