São Paulo, sábado, 26 de junho de 2004

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RODAPÉ

Os lugares da crítica

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Existe literatura sem crítica literária? Todo artefato poético encerra uma teoria da literatura? "A Leitura e Seus Lugares", escrito por Júlio Pimentel Pinto, traz à tona novamente essa pergunta, que ficou submersa depois do refluxo das grandes correntes interpretativas do século 20, do "boom" da teoria literária, cujo ponto culminante (e terminal) foram o estruturalismo e o desconstrucionismo.
Bem entendido, o livro de Pimentel Pinto não tem a ambição de lançar conceitos revolucionários ou de reivindicar para a teoria literária um papel transformador -já que a própria literatura, nestes tempos pós-utópicos, perdeu qualquer poder de intervenção sobre a realidade.
Sua pretensão é aparentemente mais modesta: "A Leitura e Seus Lugares" reúne alguns ensaios sobre clássicos modernos como Proust, Jorge Luis Borges e Bioy Casares, sobre um autor contemporâneo de romances policiais (o italiano Andrea Camilleri), além de textos sobre o imaginário latino-americano ou a interpretação textual (a noção de "obra aberta", de Umberto Eco, os "protocolos de leitura" propostos por Robert Scholes).
À primeira vista, portanto, o livro parece se limitar (o que já não seria pouco) à reflexão erudita e consistente sobre temas caros a esse historiador e crítico literário que escreveu um importante livro sobre o autor de "O Aleph" ("Uma Memória do Mundo: Ficção, Memória e História em Jorge Luis Borges").
E, no entanto, há em "A Leitura e Seus Lugares" uma defesa apaixonada da teoria como desdobramento necessário do ato de ler, já que, para Pimentel Pinto, toda leitura é interpretação, assim como toda "escritura" (no sentido que lhe dava Barthes, ou seja, de reinvenção do ato de escrever) nasce da leitura.
O livro polemiza, desde o primeiro ensaio ("Crítica e Renovação: O Exemplo e o Espelho de Botticelli"), com um tipo de crítica que, ao cair no "culto novolátrico", se torna uma pálida reprodução daquela "tradição de rupturas" de que falava Octavio Paz a propósito do espírito moderno, transformando o artefato literário num produto de consumo, reposto semanalmente na prateleira da indústria cultural.
Mais do que apontar a rarefação da crítica na academia e nos jornais, porém, Pimentel Pinto mostra como essa indigência se internalizou em teorias (se é que ainda as podemos chamar assim) que pacificam a leitura, coagulando seu sentido.
Ao discutir (e defender) a noção de "obra aberta" de Eco, escreve Pimentel Pinto: "O grande mal em questão é o da fixação do que é móvel. Ou seja, quando se patenteia uma dada obra, paralisando-a na visão que algum crítico teve dela, abre-se mão da possibilidade de circulá-la como leitor e de "reescrevê-la" na memória. Fecha-se a obra e "objetiva-se" o que foi subjetividade crítica".
Obviamente, uma das coisas que o autor tem em mente aqui é o debate sobre o caráter supostamente redutor dos estudos culturais (que aplicam categorias políticas e históricas à literatura), tema que aparece explicitamente no ensaio "Lugares e Memórias dos Livros: Bibliotecas Reais e Imaginárias", em que Pimentel Pinto discute a rejeição dos estudos culturais por Harold Bloom ("O Cânone Ocidental").
A imagem da biblioteca como lugar de memória e esquecimento, e da leitura como processo de seleção e perda de conteúdos (ao fixarmos um repertório de livros e autores, estamos ou deveríamos estar conscientes dos inúmeros outros repertórios que deixamos de constituir), percorre "A Leitura e Seus Lugares" como oscilação entre o real e o imaginário que é a marca da modernidade.
"A história, agora transmutada em historiografia, precisa também ser pensada como experiência de linguagem", escreve em "A História nas Margens". Ao mesmo tempo, porém, ele evita cuidadosamente o reducionismo de transformar tudo em "textualidade", mostrando o papel incontornável que os processos de colonização e urbanização tiveram sobre as "metáforas de pluralidade da identidade latino-americana" ou sobre os movimentos de vanguarda ("Rua de Borges e Seus Contemporâneos").


A Leitura e Seus Lugares
   
Autor: Júlio Pimentel Pinto
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 27 (184 págs.)



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