São Paulo, domingo, 26 de junho de 2005

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MÔNICA BERGAMO

Marlene Bergamo/Folha Imagem
Zezé e Caetano, na casa do compositor baiano, no Rio, falam sobre cinema, música, jabá, crise política e governo Lula


Zezé di Camargo & Caetano

O maior nome da música sertaneja se junta a um dos ícones da MPB. O resultado do inusitado encontro é a trilha sonora do filme "Dois Filhos de Francisco", sobre a vida da dupla sertaneja Zezé di Camargo & Luciano. O longa, que será lançado em agosto, trará canções do coração do Brasil. Os dois se encontraram na semana passada, na casa de Caetano, no Rio, para conversar com a coluna. Abaixo, os principais trechos:

Folha - Como surgiu a dupla [Zezé e Caetano]? Vocês já se conheciam?
Zezé -
De bastidor de televisão.

Caetano -De bastidor de televisão já faz bastante tempo. Depois você fez amizade com Paulinha [Lavigne, ex-mulher do compositor] e começamos a nos ver um pouco mais. Você foi ao meu show em São Paulo, eu fui ao seu show aqui no Claro Hall [no Rio].

Zezé - E chegar perto dele é uma coisa, né? A primeira vez em que eu vi o Caetano...[vira-se para o cantor]. Acho que você nem lembra. A gente estava num programa da Globo, no teatro Fênix.

Caetano -Eu me lembro sim. Me lembro claramente. Você estava no camarim ao lado.

Zezé - Exato. Aí eu falei para o Luciano: "O Caetano Veloso está aí. Eu vou lá. Dane-se".

Caetano -Eu adorei.

Zezé - Aí fui lá. Bati na porta, ele falou meu nome. Eu falei: "Caramba! O cara sabe que eu existo!".

Caetano -Eu fiquei alegre.

Zezé - Já me apresentei para outros artistas também: "Olha, eu sou o Zezé di Camargo". Para o Chico Buarque, eu quase cantei: "É o amooor"! Outro dia, encontrei a Regina Duarte. Eu vi televisão pela primeira vez com 12 anos. Peguei na mão dela, apertei e falei: "Cê sabe quem sou eu? A primeira novela que eu vi na minha vida ["Carinhoso"] foi com você."

No mundo do jabá

Folha - Zezé, você ouve Caetano Veloso na sua casa?
Zezé - Se eu ouço o Caetano na minha casa?

Folha - Você tem CDs dele?

Zezé - "Fina Estampa" eu tenho no meu carro.

Folha - E você, Caetano, entra no carro e põe um CD do Zezé?
Caetano - No carro...

Zezé - Ainda não. Eu não consegui essa lavagem cerebral nele ainda. Mas estou caminhando a longos passos para isso, viu?

Caetano - Mas eu agora tenho uma caixa [da dupla] que vou ouvir com cuidado.

Zezé - Eu, por exemplo, não tenho coletâneas na minha casa.

Caetano - Em compensação, ele ouve nas rádios tudo o que tem de novo na música sertaneja. Ele ouve o que rola por aí, como eu também ouço o que rola por aí.

Zezé - Eu tenho o hábito de ouvir rádio do interior porque elas não têm muito compromisso com gravadora. Tocam aquilo que dá na cabeça.

Folha - Sem jabá.
Caetano -
Sem jabá.

Folha - O que vocês pensam do jabá?

Zezé - Se você perguntar para um artista que toca nas rádios, ele não vai falar contra. Se você falar com um artista que não está na mídia...

Caetano - Eu acho um problema sério. O jabá vigorava muito nos anos 50. A chegada da Bossa Nova modificou o negócio, levou tudo para um nível mais alto. Já nos anos 60, com a minha geração, de Chico Buarque, Milton Nascimento, Gil, isso não existia mais. Cada artista tinha seu cachê para cantar na televisão. A gente vivia disso. Nos anos 70, o programa do Chacrinha começou a pagar cachê baixíssimo, simbólico. E depois passou a não pagar mais cachê. Inverteu: a gravadora tinha que pagar para a pessoa se apresentar no Chacrinha. Isso cresceu, se alastrou e virou uma regra da televisão. E das rádios.

Folha - É um mensalão?

Caetano - É o mensalão. Você vai cantar na Xuxa, no Faustão... Não é que eles paguem a você, como deveria ser. Não. A sua gravadora tem que dar um dinheiro para você cantar. Hoje já está até meio institucionalizado. São verdadeiros contratos entre gravadoras e redes de difusão. O sistema brasileiro está híbrido, entre o mero banditismo e o sistema americano, que é institucionalizado.

Folha - Caetano, quando é que você soube que o Zezé e o Luciano existiam, e o que achava deles?
Zezé -
Não fala a verdade!

Caetano - Conheci Zezé di Camargo & Luciano como a maioria dos brasileiros, quando eles estouraram com "É o Amor". Para mim, isso tudo também vem dar no porquê de esse filme [sobre a vida da dupla sertaneja] me tocar com tanta intensidade. Torci muito para que essa música, que eu só ouvia no interior de SP, quando fazia o circuito universitário, chegasse ao litoral. A música do centro-oeste chegou a ter presença nacional. Mas aquilo ficava como uma cosia recôndita, escondida. Eu ficava impressionado porque as meninas ricas do interior que levavam a gente pra passear só ouviam duplas caipiras nos carros delas. Então aquilo era um sentimento real e forte, que o resto do Brasil não conhecia. E havia, como há, nas grandes cidades do litoral, um certo desprezo pela vida do interior. Mas a pujança daquele ambiente não podia deixar de se impor.

Folha - Zezé, você sente esse desprezo?

Zezé - Ah, pra caramba. É muita resistência.

Caetano -Ele vai cantar aqui no Claro Hall e fica lotado. É um lugar imenso, e é no Rio. Mas assim, o grupo de opinião, meio na imprensa, meio na área da criação de música popular, meio na intelectualidade, meio no mundo acadêmico, tem uma resistência. E não deixa de ser saudável que haja uma defesa contra os fenômenos comerciais, uma resistência da sua integridade intelectual. Porque você não pode virar um receptáculo passivo de tudo o que é lançado sobre você pela indústria cultural. Por outro lado, muitas vezes essas pessoas estão defendendo, na verdade, uma estreiteza mental. Por exemplo, o próprio Breno Silveira [diretor do filme "Dois Filhos de Francisco]: ele compreendeu a sensibilidade dessa música. Não se tornou um idiota porque passou a gostar também daquilo.

Zezé - Eu vivo isso na pele. Recentemente eu ganhei uma apostila do Lupicínio Rodrigues. Se você olhar as minhas músicas falando de amor, eu tenho uma linguagem tão comum e tão direta como a dele. Porque na hora em que você está com problema de amor, tem vontade de pegar no colarinho e falar "sua filha da p...", "sua desgraçada, eu amo você". Um amor vagabundo mesmo. "Quando a Maria Bethânia gravou "É o amor", teve gente que descobriu que era um soneto, uma coisa maravilhosa. Então só entendeu a letra depois que Bethânia gravou? O preconceito não é nem contra a música, mas contra quem está cantando.

Corrupção vulgar

Folha -O filme "Dois Filhos de Francisco" conta, na verdade, a história de milhões de crianças brasileiras. Mas nem todas as histórias têm o final feliz, como aconteceu com vocês. Eu queria saber, diante disso, a opinião de vocês sobre o Brasil hoje.
Zezé -
Ninguém tem a diversidade cultural que nós temos. É o grande trunfo do Brasil.

Folha - Como assim?
Zezé -
Você conversa com brasileiros, quase todos sabem contar uma piada de francês, de italiano. O americano, que é de uma nação mais evoluída, é tapado. Ele não sabe da França ou da Europa como nós sabemos. Não quero jogar todo mundo numa vala comum, mas aqui no Brasil nós fomos muito mal dirigidos.

Folha - Você confia no Lula?
Zezé -
Muito. O Lula para mim continua sendo a mesma pessoa. A figura do Lula é muito maior do que isso que está acontecendo. O brasileiro tem que entender que só mudando de presidente não vai mudar nada. Para conseguir governar ele que ter maioria no Congresso, e existe uma barganha muito grande. Não acho que tenha mais corrupção hoje. A imprensa está indo mais atrás, o Ministério Público também. Isso é bom.

Folha - E você, Caetano, o que pensa do "mensalão"?
Caetano -
Eu não colocar o Lula num lugar de vestal e separá-lo do que está se passando. Mas não há dúvida de que aquilo de que o governo está sendo acusado agora -por figuras que são, tradicionalmente, muito menos respeitadas do que ele- é um tipo de irregularidade que não é da mesma natureza daquelas praticadas por aqueles que querem enriquecer egoísticamente, de uma maneira vulgar. Não. Tudo aponta para a possibilidade de que o PT, por ser de esquerda e por ter chegado ao poder, pensar que tem o direito de fazer o que quer que seja para se manter no poder. Mas ninguém está dizendo que o [ex-ministro] José Dirceu ou que as grandes figuras do governo Lula queriam enriquecer, fazer bacanais em casas com piscinas e comprar camisas liláses. O que parece é que se acham no direito de lançar mão de práticas ilegítimas para se manter no poder porque eles merecem estar no poder pois representam algo de melhor na história.

Folha - Os fins justificam os meios.

Caetano - É um tipo de pensamento da esquerda. Muita gente dizia: Stálin é um mal necessário.

Zezé -Nunca vi mal necessário.

Caetano - Mas dizia-se isso: "Stálin é um mal necessário". Algumas pessoas de esquerda admitiam, quando eu era garoto, que Stálin era um horror, mas necessário. Só espero que isso [as denúncias de corrupção] não destrua as instituições democráticas do Brasil. Repito uma frase que eu disse antes da posse: o que eu desejo é que o Lula possa exercer o seu mandato, do primeiro ao último dia, e que passe a faixa presidencial a outro presidente dentro do rito democrático.

Folha - Mas você tem algum temor de que isso não aconteça?

Caetano -Eu não tenho muito temor. Mas não desejo que nada ameace isso.

Folha - Como você avalia o governo como um todo?
Caetano -
A única coisa que funciona honestamente e coerentemente no governo é a política econômica. O resto é um caos.

Folha -Todo o resto?

Caetano -Eu acho. Todo o resto. Você vai me perguntar do Ministério da Cultura, de Gil, que é meu amigo? Ele também está dentro. O Gil é maravilhoso. Mas o ministério não tem verba, não decide muito coisa. Não está fora de uma certa confusão que é relativamente caótica. Gil dá um certo brilho para a pasta, as pessoas se lembram de que existe o Ministério da Cultura porque Gil está lá. Isso é bacana. Agora, conseguimentos concretos, coerentes, interessantes, não apareceram. A Cultura não está fora do caos de que eu falei, não.


@ - bergamo@folhasp.com.br
COM JOÃO LUIZ VIEIRA E DANIEL BERGAMASCO



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