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Ruiz tece labirintos a
partir das aparências
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Se o cinema não capta a realidade do mundo, mas apenas sua
aparência, suas sombras, como
pode se pretender arte do real?
Essa questão percorre o cinema
pelo menos desde que Orson Welles filmou "Cidadão Kane". Não é
exagero dizer que é a pergunta
central do cinema moderno.
Porque o cinema (como a TV ou
a fotografia) aspira captar a "realidade objetiva", o mundo como
ele é. No entanto, à medida que os
anos avançam, já não é mais à
imagem do mundo que endereçamos essa pergunta, mas ao próprio mundo. Não é mais da capacidade de apreender a realidade
que duvidamos, mas da própria
realidade.
Daí podem derivar diferentes
formas de cinema. Os americanos
impuseram um que deliberadamente procura transportar o espectador para o domínio da fantasia, evitando qualquer contato
com o mundo real.
Os iranianos, ao contrário, trabalham numa perspectiva realista,
mas seus filmes deixam um vazio.
É como se a imagem real não fosse
a que se vê na tela, mas a produzida pelo encontro entre a imagem
na tela e o olhar do espectador.
Já os filmes do chileno (radicado
na França) Raoul Ruiz remetem a
uma terceira categoria. E é a esta
que nos conduz "Genealogias de
um Crime", que está sendo lançado em São Paulo.
Ruiz aparece como um herdeiro
direto de Orson Welles e Jorge
Luis Borges, na medida em que
aceita o mundo como constituído
por aparências, a partir das quais
compõe seus labirintos.
Talvez a melhor maneira de introduzir a seu cinema não seja remetendo a autores ilustres, mas a
um fato banal, ocorrido recentemente. Durante a Copa do Mundo, um cinegrafista de TV pediu à
torcida -que estava quieta durante um treino do Brasil- para
se agitar e fazer barulho. Os torcedores obedeceram e ele gravou as
imagens com esse clima festivo.
Não havia festa alguma, mas o
tipo de cobertura pedia uma "atmosfera". O cinegrafista, mais a
torcida, criaram a cena (a ficção),
produziram o verossímil, em detrimento do verdadeiro.
Esse exemplo de "real produzido" nos leva a questionar: até que
ponto podemos acreditar no que
vemos, quando vemos uma reportagem, um filme, um comercial?
Na verdade, não podemos acreditar. No entanto, queremos acreditar. Entre o poder e o querer é
que Ruiz constrói suas "Genealogias de um Crime".
É provável que muitos espectadores, perplexos, afirmem não entender "isso". Mas é justamente a
possibilidade de não entender que
nos solicita. Se concordamos que
tudo aquilo que acreditamos verdadeiro (o entusiasmo da torcida
no treino, por exemplo) pode ser
falso, por que não jogar na hipótese contrária?
Talvez, se nos abandonarmos à
incoerência aparente das imagens
do filme, cheguemos a algo. Não é
de incoerência que se trata, na verdade. No início é só uma espécie
de filme noir: Catherine Deneuve é
Solange, uma advogada que defende René, um jovem acusado de
matar Jeanne, sua própria tia.
A partir daí temos uma bifurcação importante: René vê em Solange a própria tia; Solange vê em
René a imagem de seu próprio filho, morto há pouco. Com isso,
Solange passa a incorporar Jeanne
e tem um caso amoroso com René.
Já seria bastante complicado,
mas existem ainda os membros de
duas estranhas sociedade psicanalíticas que se põem entre René e
Solange e, sobretudo, entre Solange e a verdade.
A partir daí, estamos em pleno
labirinto, num jogo de espelhos
diabólico, onde nada nos assegura
daquilo que o espectador mais
preza: a segurança. Talvez muitos
confundam essa segurança com
possibilidade de compreensão.
Talvez não seja inútil, por uma
vez, abandonar-se à incompreensão. A essa incompreensão que, no
fundo, talvez nem seja isso. O que
Ruiz faz, com maestria, é nos jogar
no mistério dos seres. Só que, ao
contrário da maior parte dos filmes, quando chega o final o que se
impõe não é uma solução, nem
um "happy end". É a própria espessura dos seres que se tece e que
baila no fabuloso mas diabólico labirinto construído por Ruiz.
Filme: Genealogias de um Crime
Produção: França, 1996
Direção: Raoul Ruiz
Com: Catherine Deneuve, Michel Piccoli
Quando: a partir de hoje, no Cinesesc
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