São Paulo, sexta, 26 de junho de 1998

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Ruiz tece labirintos a partir das aparências

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Se o cinema não capta a realidade do mundo, mas apenas sua aparência, suas sombras, como pode se pretender arte do real?
Essa questão percorre o cinema pelo menos desde que Orson Welles filmou "Cidadão Kane". Não é exagero dizer que é a pergunta central do cinema moderno.
Porque o cinema (como a TV ou a fotografia) aspira captar a "realidade objetiva", o mundo como ele é. No entanto, à medida que os anos avançam, já não é mais à imagem do mundo que endereçamos essa pergunta, mas ao próprio mundo. Não é mais da capacidade de apreender a realidade que duvidamos, mas da própria realidade.
Daí podem derivar diferentes formas de cinema. Os americanos impuseram um que deliberadamente procura transportar o espectador para o domínio da fantasia, evitando qualquer contato com o mundo real.
Os iranianos, ao contrário, trabalham numa perspectiva realista, mas seus filmes deixam um vazio. É como se a imagem real não fosse a que se vê na tela, mas a produzida pelo encontro entre a imagem na tela e o olhar do espectador.
Já os filmes do chileno (radicado na França) Raoul Ruiz remetem a uma terceira categoria. E é a esta que nos conduz "Genealogias de um Crime", que está sendo lançado em São Paulo.
Ruiz aparece como um herdeiro direto de Orson Welles e Jorge Luis Borges, na medida em que aceita o mundo como constituído por aparências, a partir das quais compõe seus labirintos.
Talvez a melhor maneira de introduzir a seu cinema não seja remetendo a autores ilustres, mas a um fato banal, ocorrido recentemente. Durante a Copa do Mundo, um cinegrafista de TV pediu à torcida -que estava quieta durante um treino do Brasil- para se agitar e fazer barulho. Os torcedores obedeceram e ele gravou as imagens com esse clima festivo.
Não havia festa alguma, mas o tipo de cobertura pedia uma "atmosfera". O cinegrafista, mais a torcida, criaram a cena (a ficção), produziram o verossímil, em detrimento do verdadeiro.
Esse exemplo de "real produzido" nos leva a questionar: até que ponto podemos acreditar no que vemos, quando vemos uma reportagem, um filme, um comercial?
Na verdade, não podemos acreditar. No entanto, queremos acreditar. Entre o poder e o querer é que Ruiz constrói suas "Genealogias de um Crime".
É provável que muitos espectadores, perplexos, afirmem não entender "isso". Mas é justamente a possibilidade de não entender que nos solicita. Se concordamos que tudo aquilo que acreditamos verdadeiro (o entusiasmo da torcida no treino, por exemplo) pode ser falso, por que não jogar na hipótese contrária?
Talvez, se nos abandonarmos à incoerência aparente das imagens do filme, cheguemos a algo. Não é de incoerência que se trata, na verdade. No início é só uma espécie de filme noir: Catherine Deneuve é Solange, uma advogada que defende René, um jovem acusado de matar Jeanne, sua própria tia.
A partir daí temos uma bifurcação importante: René vê em Solange a própria tia; Solange vê em René a imagem de seu próprio filho, morto há pouco. Com isso, Solange passa a incorporar Jeanne e tem um caso amoroso com René.
Já seria bastante complicado, mas existem ainda os membros de duas estranhas sociedade psicanalíticas que se põem entre René e Solange e, sobretudo, entre Solange e a verdade.
A partir daí, estamos em pleno labirinto, num jogo de espelhos diabólico, onde nada nos assegura daquilo que o espectador mais preza: a segurança. Talvez muitos confundam essa segurança com possibilidade de compreensão.
Talvez não seja inútil, por uma vez, abandonar-se à incompreensão. A essa incompreensão que, no fundo, talvez nem seja isso. O que Ruiz faz, com maestria, é nos jogar no mistério dos seres. Só que, ao contrário da maior parte dos filmes, quando chega o final o que se impõe não é uma solução, nem um "happy end". É a própria espessura dos seres que se tece e que baila no fabuloso mas diabólico labirinto construído por Ruiz.

Filme: Genealogias de um Crime Produção: França, 1996 Direção: Raoul Ruiz Com: Catherine Deneuve, Michel Piccoli Quando: a partir de hoje, no Cinesesc


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