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NELSON ASCHER
Bush vs. Kerry
Daqui a poucos meses as
pessoas mais poderosas do
planeta farão uma escolha cujos
desdobramentos afetarão a todos
nós durante anos. Essas pessoas
são o eleitorado norte-americano
que decidirá, em novembro, se o
republicano George W. Bush ficará mais quatro anos na Casa
Branca ou se dará lugar ao democrata John F. Kerry.
Seja qual for o resultado, esta
será a disputa presidencial mais
importante dos últimos decênios,
porque, ao contrário do que em
geral acontece, o que vai estar em
jogo no fim de 2004 não é tal ou
qual doutrina econômica nem
qualquer tópico que diga respeito
principalmente aos cidadãos dos
Estados Unidos. Pela primeira
vez desde a Guerra do Vietnã ou
os primórdios da Guerra Fria, as
próximas eleições serão dominadas pela política internacional, e
isso numa época em que o que
quer que os EUA façam ou deixem de fazer repercute mais profundamente do que antes no resto
do mundo.
A discussão, porém, não se limitará à campanha do Iraque, uma
vez que a transferência de poder
para um governo provisório local
já está dando uma cara iraquiana, não mais americana, aos distúrbios de lá, e essa tendência deve se acentuar a cada mês que
passa. O debate central, que envolve a reorganização estratégica
e geopolítica do planeta, a dissolução de antigas alianças e a formação de novas, o futuro da
Otan, da ONU, da União Européia e do processo de globalização, vai se encapsular numa única pergunta: como é que os Estados Unidos devem lidar com o
terrorismo islâmico?
Desde que essa pergunta se colocou a sério com a instalação, 25
anos atrás, de um regime clericalista no Irã, a resposta era a de
que tudo não passava de um caso
de polícia a ser resolvido mediante a investigação, detenção, julgamento e condenação de indivíduos ou grupos de acordo com os
parâmetros da justiça nacional e
internacional. Depois dos mega-atentados de 2001 a atual administração passou a abordar a
ameaça como uma questão militar.
A diferença entre ambas as
abordagens não é somente nominal. A primeira vê o problema como algo superficial, incapaz de
influenciar o destino de povos e
nações, quase um fenômeno natural cujos efeitos podem ser mitigados, mas cujas causas não
acharão uma cura a curto prazo.
A segunda, contudo, o toma como
um defeito estrutural da ordem
internacional e como uma agressão que, se não for combatida,
atingirá seus objetivos.
Enquanto os defensores da primeira falam em diplomacia, reformas, redistribuição de renda
etc., afirmando que guerra é algo
que se trava obrigatoriamente
entre Estados, os da segunda insistem que o terrorismo decorre
menos de estatísticas do que de
uma ideologia e que movimentos
subnacionais ou transnacionais
são igualmente capazes de guerrear. Caso se trate de um caso de
polícia, não há inimigos, mas sim
suspeitos, todos eles inocentes até
prova em contrário. Se o que está
acontecendo, no entanto, é uma
guerra, então os antagonistas são
inimigos de verdade que precisam ser capturados ou mortos.
Bush, sem dúvida, defenderá
sua orientação que, se temida ou
desprezada no exterior, é popular
em seu país. Kerry, para convencer os militantes de seu partido a
fazerem dele o candidato à presidência, se contrapôs a Bush no
início e agora, para atrair os eleitores centristas e indecisos, precisa se aproximar da orientação
que combatera, tomando o cuidado de não alienar a esquerda
democrata. Ele também procurará redirigir a discussão para a política interna, se bem que a recente retomada do crescimento econômico favoreça seu adversário.
Que Bush seja detestado ou temido no exterior, sobretudo na
Europa ocidental, não traz alívio
para Kerry, ainda mais porque ao
antiamericanismo europeu contrapõe-se hoje em dia um novo e
intenso antieuropeanismo americano. Nem as pesquisas de intenção de voto, que mostram Kerry
alguns pontos na frente, chegam a
ser demasiado importantes. Essas
oscilam com freqüência e a única
intenção de voto que conta é a definitiva, nas urnas. A posição de
Bush é mais confortável do que
seus inimigos gostariam de crer e
nada o prova melhor do que o fato de que, a rigor, ele mal começou sua campanha.
A oposição ao presidente, desde
a recontagem dos votos na Flórida, tem sido tão intensa e ininterrupta que seus adversários, usando e abusando cedo demais de vários entre os melhores argumentos de que dispunham, correm o
risco de chegar às eleições com
pouca munição. No meio tempo,
os republicanos se mantiveram
discretos e silenciosos, guardando
seus trunfos para a hora certa. A
torcida menos pró-Kerry do que
anti-Bush na imprensa liberal
americana, na Europa e mesmo
no Brasil impede que se constate o
óbvio, ou seja, que não há como se
ter uma idéia informada do que
sucederá em novembro antes de
outubro.
Malgrado a caricatura, segundo a qual a administração atual é
concomitantemente idiota e ardilosa, induzir muitos a verem em
Kerry um salvador, alguém que
reconduzirá a hiperpotência à
normalidade dos anos 90, sua vitória, a esta altura, não está minimamente assegurada. O candidato democrata não é nenhum Clinton, e mesmo esse, para conseguir
seu primeiro mandato, foi auxiliado por um terceiro candidato,
o milionário conservador Ross
Perot, que ficou com os votos necessários para a reeleição do pai
de Bush. Convém tampouco esquecer que, numa democracia, a
margem de manobra de qualquer
presidente é exígua e que, se eleito, Kerry será compelido, especialmente no caso de um novo
mega-atentado, a seguir boa parte da política internacional de seu
antecessor.
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