São Paulo, segunda-feira, 26 de julho de 2004

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NELSON ASCHER

Bush vs. Kerry

Daqui a poucos meses as pessoas mais poderosas do planeta farão uma escolha cujos desdobramentos afetarão a todos nós durante anos. Essas pessoas são o eleitorado norte-americano que decidirá, em novembro, se o republicano George W. Bush ficará mais quatro anos na Casa Branca ou se dará lugar ao democrata John F. Kerry.
Seja qual for o resultado, esta será a disputa presidencial mais importante dos últimos decênios, porque, ao contrário do que em geral acontece, o que vai estar em jogo no fim de 2004 não é tal ou qual doutrina econômica nem qualquer tópico que diga respeito principalmente aos cidadãos dos Estados Unidos. Pela primeira vez desde a Guerra do Vietnã ou os primórdios da Guerra Fria, as próximas eleições serão dominadas pela política internacional, e isso numa época em que o que quer que os EUA façam ou deixem de fazer repercute mais profundamente do que antes no resto do mundo.
A discussão, porém, não se limitará à campanha do Iraque, uma vez que a transferência de poder para um governo provisório local já está dando uma cara iraquiana, não mais americana, aos distúrbios de lá, e essa tendência deve se acentuar a cada mês que passa. O debate central, que envolve a reorganização estratégica e geopolítica do planeta, a dissolução de antigas alianças e a formação de novas, o futuro da Otan, da ONU, da União Européia e do processo de globalização, vai se encapsular numa única pergunta: como é que os Estados Unidos devem lidar com o terrorismo islâmico?
Desde que essa pergunta se colocou a sério com a instalação, 25 anos atrás, de um regime clericalista no Irã, a resposta era a de que tudo não passava de um caso de polícia a ser resolvido mediante a investigação, detenção, julgamento e condenação de indivíduos ou grupos de acordo com os parâmetros da justiça nacional e internacional. Depois dos mega-atentados de 2001 a atual administração passou a abordar a ameaça como uma questão militar.
A diferença entre ambas as abordagens não é somente nominal. A primeira vê o problema como algo superficial, incapaz de influenciar o destino de povos e nações, quase um fenômeno natural cujos efeitos podem ser mitigados, mas cujas causas não acharão uma cura a curto prazo. A segunda, contudo, o toma como um defeito estrutural da ordem internacional e como uma agressão que, se não for combatida, atingirá seus objetivos.
Enquanto os defensores da primeira falam em diplomacia, reformas, redistribuição de renda etc., afirmando que guerra é algo que se trava obrigatoriamente entre Estados, os da segunda insistem que o terrorismo decorre menos de estatísticas do que de uma ideologia e que movimentos subnacionais ou transnacionais são igualmente capazes de guerrear. Caso se trate de um caso de polícia, não há inimigos, mas sim suspeitos, todos eles inocentes até prova em contrário. Se o que está acontecendo, no entanto, é uma guerra, então os antagonistas são inimigos de verdade que precisam ser capturados ou mortos.
Bush, sem dúvida, defenderá sua orientação que, se temida ou desprezada no exterior, é popular em seu país. Kerry, para convencer os militantes de seu partido a fazerem dele o candidato à presidência, se contrapôs a Bush no início e agora, para atrair os eleitores centristas e indecisos, precisa se aproximar da orientação que combatera, tomando o cuidado de não alienar a esquerda democrata. Ele também procurará redirigir a discussão para a política interna, se bem que a recente retomada do crescimento econômico favoreça seu adversário.
Que Bush seja detestado ou temido no exterior, sobretudo na Europa ocidental, não traz alívio para Kerry, ainda mais porque ao antiamericanismo europeu contrapõe-se hoje em dia um novo e intenso antieuropeanismo americano. Nem as pesquisas de intenção de voto, que mostram Kerry alguns pontos na frente, chegam a ser demasiado importantes. Essas oscilam com freqüência e a única intenção de voto que conta é a definitiva, nas urnas. A posição de Bush é mais confortável do que seus inimigos gostariam de crer e nada o prova melhor do que o fato de que, a rigor, ele mal começou sua campanha.
A oposição ao presidente, desde a recontagem dos votos na Flórida, tem sido tão intensa e ininterrupta que seus adversários, usando e abusando cedo demais de vários entre os melhores argumentos de que dispunham, correm o risco de chegar às eleições com pouca munição. No meio tempo, os republicanos se mantiveram discretos e silenciosos, guardando seus trunfos para a hora certa. A torcida menos pró-Kerry do que anti-Bush na imprensa liberal americana, na Europa e mesmo no Brasil impede que se constate o óbvio, ou seja, que não há como se ter uma idéia informada do que sucederá em novembro antes de outubro.
Malgrado a caricatura, segundo a qual a administração atual é concomitantemente idiota e ardilosa, induzir muitos a verem em Kerry um salvador, alguém que reconduzirá a hiperpotência à normalidade dos anos 90, sua vitória, a esta altura, não está minimamente assegurada. O candidato democrata não é nenhum Clinton, e mesmo esse, para conseguir seu primeiro mandato, foi auxiliado por um terceiro candidato, o milionário conservador Ross Perot, que ficou com os votos necessários para a reeleição do pai de Bush. Convém tampouco esquecer que, numa democracia, a margem de manobra de qualquer presidente é exígua e que, se eleito, Kerry será compelido, especialmente no caso de um novo mega-atentado, a seguir boa parte da política internacional de seu antecessor.


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