São Paulo, sábado, 26 de julho de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Sentimento íntimo da infâmia


Ensaísta argentina Beatriz Sarlo busca as tensões históricas na prosa metafísica de Borges

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

COM UM intervalo de 80 anos, Jorge Luis Borges escreveu no ensaio "O Escritor Argentino e a Tradição" algo muito similar àquilo que disse Machado de Assis em "Instinto de Nacionalidade", de 1873.
Discutindo a especificidade de literaturas feitas nos confins da cultura européia -mas a esta pertencentes-, ambos descartam a "cor local", a temática regional, como critério definidor de uma nacionalidade literária. O autor de "Dom Casmurro" torce o nariz para os árcades (com seus pastores e lugares aprazíveis) e para o indianismo dos românticos: "O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço." E Borges (num exemplo também presente em Machado) observa com ironia que a ninguém ocorreria confiscar de Shakespeare o título de maior poeta inglês por ter ele ambientado peças na Dinamarca ("Hamlet") ou em Verona ("Romeu e Julieta"). A verdade, porém, é que existe a propensão a se pensar em Borges como um escritor que aos poucos foi se desligando de suas raízes argentinas, que trocou os arrabaldes de Buenos Aires por bibliotecas e labirintos imaginários. Restaurar o que há de local em sua universalidade é a tarefa de Beatriz Sarlo em "Jorge Luis Borges, um Escritor na Periferia". Ensaísta que combina sofisticação teórica com engajamento intelectual, ela afirma que "ler Borges como um escritor sem nacionalidade, um grande entre os grandes, é, por um lado, um impecável ato de justiça estética: nele se descobrem as preocupações, as perguntas, os mitos que, no Ocidente, consideramos universais". Por outro lado, ela vê nesse "ato de justiça" um expurgo dos laços que o atavam às tradições rio-pratenses, à poesia popular de Evaristo Carriego. Sarlo não evoca o texto de Machado de Assis, mas o título de seu livro remete à definição do escritor carioca como "mestre na periferia do capitalismo" (Roberto Schwarz). A diferença é que Machado incorporou à estrutura de seus romances as ambivalências da dinâmica social brasileira, ao passo que Borges parece ter recusado essa dinâmica "periférica", refugiando-se em cosmologias livrescas, no "périplo frívolo por filosofias e teologias nas quais não crê" (segundo o veredicto de Ernesto Sabato em "O Escritor e seus Fantasmas"). Para Sarlo, entretanto, a mistura de literatura fantástica e cosmopolitismo presente na obra de Borges é uma "resposta racionalista à desordem que ele percebeu em seu século". O "sentimento íntimo", enfim, teria migrado do subúrbio portenho para um espaço atemporal, cuja perfeição é uma paródia da infâmia universal.

JORGE LUIS BORGES, UM ESCRITOR NA PERIFERIA
Autor: Beatriz Sarlo
Tradução: Samuel Titan Jr.
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 35 (160 págs.)
Avaliação: ótimo



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