São Paulo, terça-feira, 26 de agosto de 2008

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Crítica/show

No Rio, João Gilberto aplaude e pede bis

Acompanhado pela platéia em "Chega de Saudade", músico surpreende ao solicitar novo "sussurro" e diz: "Não quero mais ir embora!'

Rafael Andrade/Folha Imagem
O músico anteontem, no Teatro Municipal do Rio, aplaude o público; "Vamos fazer de novo?', pede, ao fim de "Chega de Saudade"

RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA

Com 55 minutos de atraso (ninguém reclamou), João Gilberto entrou no palco do Teatro Municipal do Rio, na noite de domingo, e selou um pacto de amor com a platéia carioca, para a qual não cantava desde 1994. Foi longamente aplaudido em todos os 30 sambas e canções que desfiou durante uma hora e 20 minutos, repetindo boa parte do repertório que apresentara em São Paulo na semana anterior. Mas, quase ao fim, deu-se uma surpresa.
Ao começar "Chega de Saudade", de Tom e Vinicius, foi acompanhado à meia-voz pela platéia. Sabendo-se que ele não gosta de interferências externas enquanto canta, alguns gelaram -como João Gilberto iria reagir? Pois ele levou o samba até o fim. Quando terminou, fez uma pausa e disse, sorrindo: "Gostei desse sussurro. Vamos fazer de novo?". E puxou um novo "Chega de Saudade", com a letra inteira sendo cantada duas vezes pelo público, e ele, com ar de grande satisfação, acompanhando-o ao violão e aos contracantos.
Ao aplaudir a platéia, exclamou: "Só tem um problema. Não quero mais ir embora!". Então, arregaçou a manga do braço direito, como se os trabalhos fossem começar ali. Atacou de "Garota de Ipanema", da qual o público também participou, e fechou com um "O Pato" cheio de quebradas diferentes, vocalizes e truques de conjuntos vocais. Só então saiu do palco. Foi aplaudido por cinco minutos, mas não voltou. Tudo bem. Os sorrisos nos rostos, nas escadarias do Municipal, eram a prova de que todos tinham caído no visgo do sedutor.
Mas, no começo, houve quem temesse pelo pior. João Gilberto entrou cantando ainda mais baixo que de costume, como se não soubesse o que esperar daquela noite. Foi assim nos três Caymmis com que abriu o recital ("Você Já Foi à Bahia?", "Doralice" e "Rosa Morena") e na pequena jóia "Treze de Ouro", de Herivelto Martins e Marino Pinto, criada pelos Anjos do Inferno em 1949. Mas o público mostrou que estava ao seu lado, apurando os ouvidos e se esforçando para não respirar, ofegar ou ter crises de asma. Em "Meditação", de Tom e Newton Mendonça, e "Preconceito", de Wilson Batista e Marino Pinto, o volume parecia restabelecido. Com "Samba do Avião", só de Tom, já estávamos em velocidade de cruzeiro.
Então, a inesperada delícia: sua interpretação de dois movimentos da "Sinfonia do Rio de Janeiro", de Billy Blanco e Jobim, cantados originalmente, em 1954, por Dick Farney e Nora Ney. São conhecidos registros particulares por João Gilberto dessa antecessora direta da bossa nova, mas ele nunca a gravou comercialmente. O ciclo Jobim, com vários parceiros, continuou com "Ligia", "Caminhos Cruzados", "Desafinado", "Corcovado" e, mais impressionante, um "Retrato em Branco e Preto" em que ele exibiu seus incríveis foles de 77 anos, sustentando as frases longuíssimas e mortíferas.
Vendo-o ao vivo, é fácil entender por que ele se diz um "cantor de sambas". Foi com indisfarçável prazer que se entregou a "Isto Aqui, o que É?", de Ary Barroso, "Não Vou Pra Casa", de Antonio Almeida e Roberto Roberti, e "Tim-tim por Tim", de Geraldo Jacques e Haroldo Barbosa. Nesta, lembrou-se dos Cariocas, que a lançaram, e os chamou de "professores de música do Brasil". Citou seus nomes um por um e perguntou, "Cadê Os Cariocas?". Não por acaso, dois deles, Badeco e Quartera, integrantes originais do conjunto, quase chorando, estavam nos camarotes, misturados às celebridades, estas ignoradas pelo público diante do astro maior.

Avaliação: ótimo



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