São Paulo, quarta, 26 de agosto de 1998

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Slogan de Maluf joga com os limites da cara-de-pau

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Os marketeiros entendem mais do assunto do que eu, é claro, mas não consigo deixar de considerar um enorme erro a frase dizendo que Maluf "não é nenhum santo, mas senta e faz." Não esperávamos uma confissão tão escancarada assim.
O verbo "rouba", ausente da frase, lateja na memória e no inconsciente do público: "Rouba, mas faz", dizia-se de Adhemar de Barros. Há também outro verbo, oculto nesse "senta e faz", mas deixo a José Simão o prazer de explicitá-lo.
De algum modo, as coisas se descontrolaram na propaganda malufista. Pois me parece evidente que esse slogan dá mais munição aos opositores do que aos adeptos de Maluf. E, quanto aos indecisos, terão de enfrentar uma nova dúvida: "Aceito que me chamem de imbecil?"
Como Duda Mendonça não é nenhum imbecil e, como Maluf, sem ser nenhum gênio, sabe o que faz, tento entender um pouco o que se passa quando um slogan desse tipo é veiculado no horário eleitoral.
Tenho a impressão de que, em primeiro lugar, manifestou-se aqui uma espécie de sensação de poder, de onipotência mesmo, do publicitário. A confissão malufista se baseia na tese de que, em publicidade, tudo pode ser dito. O cinismo se sustenta na imbecilidade geral.
Não por acaso, quem diz a frase é uma mulher. Não tem o tom de voz de uma maluquinha; ao contrário, é agressiva, ressentida, militante, declara-se revoltada com as acusações de que Maluf tem sido vítima. A credulidade feminina, construída ao longo de séculos de opressão, vinga-se aqui dizendo "a verdade": "Sei que ele não é nenhum santo".
Do mesmo modo, temos uma Hebe malufista. É o caso de uma mulher independente e voluntariosa, que sentiu de certo modo suas bandeiras de independência e voluntarismo sequestradas pelo feminismo de esquerda. Procurando o escândalo, mas sem forças ou convicções para ser de esquerda, Hebe apóia Maluf para apoiar todo escândalo que não seja baixaria feminina.
Na verdade, Maluf faz da política, como ninguém, um assunto masculino. Covas é másculo, sem dúvida, ao ponto de ser prejudicado por essa característica. O engenheiro mal-humorado, de voz gravíssima, perde em sedução e simpatia. Covas é o marido fiel; Maluf, o marido que, sem ser nenhum santo, cumpre as tarefas domésticas.
A mulher que declama o slogan segundo o qual Maluf "não é nenhum santo" fala dele como de um marido. O modelo conjugal se apaga, ou se inverte, no caso de Marta Suplicy -que parece mais decisiva e firme do que seu esposo senador. Eduardo tem as virtudes femininas da insistência, da chatice, da pontualidade. Marta, como candidata, faz de sua condição classista -de seu sotaque burguês- uma mensagem bastante clara: "Eu sei mandar".
Mas, se é assim que a feminilidade se afirma, fica evidente o sucesso de Rossi nestas eleições. Ele se faz de passivo, de inócuo, de feminino. Não precisa da falsa mulher inventada pela propaganda malufista nem da verdadeira mulher encenada por Marta Suplicy. Ele é o homem feminilizado, que canta canções românticas, e não promete nada. Joga com a própria impotência.
Maluf joga com a sua potência. Por isso imagina a mulher que perdoa suas escapadas. Covas é o bom marido, cuja ausência de traição é motivo de suspeita. Marta é a esposa tirânica, que manda, mas é fraca, e assume seu poder como quem não o merecesse -ainda que se julgue merecedora do poder.
Mas tudo isso é uma digressão sobre papéis sexuais. Tendo a considerar o erro de Duda Mendonça mais grave.
Dizer que "Maluf não é nenhum santo" equivale a algumas regras de publicidade muito duvidosas. Trata-se, em primeiro lugar, da regra da "vacina", identificada pelo semiólogo Roland Barthes já nos anos 50. Ou seja, admitimos os defeitos do produto, e com isso o consumidor aceita nossa lorota. Não é diferente dos anúncios de Washington Olivetto para certa rede de distribuição de gasolina. Claro, mostrar os defeitos ou a fragilidade do produto a ser vendido é uma regra para vendê-lo mais.
Mas aqui nos aproximamos de uma lógica bastante perversa da propaganda. A de que quanto mais formos verdadeiros, mais seremos eficientes. Acho que foi isso o que mobilizou os marketeiros de Maluf. Eles brincam com a verdade. Julgam-se donos dela, não no sentido de um militante que bate sempre no mesmo ponto, mas no sentido de que podem dizer tudo o que quiserem.
Confessam sua desconfiança diante de Maluf. Acham que essa desconfiança pode ser usada em campanha. Encenam a culpa (de mentir) como uma vitória (a de conseguir dizer a verdade mesmo assim). Mas a cara-de-pau tem um limite, acho. Acho que Duda Mendonça encontrou esse limite. Terá Maluf encontrado o seu? Imagino que se arrepende de alguma coisa.
Pois é claro que a idéia de que ele "não é nenhum santo" só se sustenta pela impunidade geral, e tivemos de ter um Celso Pitta bradando contra o malufismo. Em todo caso, é Maluf quem nos pede perdão pela suposta ausência de santidade.
Ausência de santidade, todos perdoamos. Mas o que essa frase quer dizer? Vilania, cinismo, roubo, banditismo? Não sei. Sei que ela nos chama de idiotas. Sei também que a publicidade faz isso diariamente. Mas uma marca de sabonete, um aparelho de som, uma companhia de aviação, tendem a ser mais neutras do ponto de vista moral.



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