São Paulo, sábado, 26 de outubro de 2002

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"O ESPELHO PARTIDO"

Marques Rebelo recolhe pedaços de tempo estilhaçado em diários

ROGÉRIO EDUARDO ALVES
DA REDAÇÃO

Embora a forma encontrada por Marques Rebelo para escrever suas confissões na trilogia "O Espelho Partido" tenha sido a do diário, a obra não chega a ser um exemplo do gênero, como também não se completa em romance, conto, crônica ou poesia. Em mosaico, elementos desses diversos gêneros retratam uma vida e um tempo em estilhaços.
É no lírico "O Trapicheiro" (59), primeiro tomo da série e que aborda de 1936 a 1938, que estão reunidas as lembranças de infância desse escritor carioca que nasceu Edi Dias da Cruz (1907-1973) e, antes de se dedicar às memórias, foi jornalista e autor de crônicas e romances urbanos.
As recordações dos tempos em que vivia no Trapicheiro, as rixas escolares com Emanuel, seu irmão, e as paqueras assaltam o narrador-autor entre os registros de suas atividades diárias, como as crises que marcam a confecção de seu romance mais conhecido, "A Estrela Sobe" (1939).
Emaranhado de tempo, as linhas de Rebelo são também uma babel de personagens. Lenisa Maier, por exemplo, cantora de rádio protagonista de "A Estrela Sobe", circula próxima ao escritor, ele mesmo nem Marques, nem Edi, mas Eduardo. Trocando nomes de amigos e conhecidos, Rebelo fica livre para criticar, apoiar ou dar um tom de ficção às histórias vividas, muitas vezes transcritas na forma de diálogos.
Interessante é a narração do momento político que toma conta do país e do mundo, desde o Estado Novo de Getúlio Vargas até a Segunda Guerra Mundial. Presente nas discussões dos amigos, a política do período ganha sua história a partir de um ponto de vista privado e intelectualizado.
À diferença de um simples diário em que são registrados os acontecimentos dos dias, na maioria das vezes secamente e sem uma preocupação formal, as anotações de Rebelo demonstram um cuidado próprio da construção literária. Isso fica marcado no ritmo de frases e parágrafos aos moldes da poesia, na escolha minuciosa do vocabulário, no encadeamento das anotações -na maioria das vezes irônico- e também na confusão entre acontecimentos íntimos e externos.
Essa última característica é evidente em "A Mudança" (62), que cobre de 1939 a 1941. A eclosão da guerra é mostrada em paralelo com a perda da amante Catarina. Ao mesmo tempo, as recordações do serviço militar e as brigas com o irmão diplomata acompanham as notícias da guerra.
Em meio a essas mudanças, aumenta a participação de um personagem que pouco aparece no primeiro tomo: o espelho. Espécie de alter ego bufão, ele passa a fazer parte da vida do escritor.
Aquele olhar que sempre tentou se encontrar por meio das linhas que rabisca em cadernos durante a noite, e que viriam a ser o diário, agora encontra no espelho o peso dos anos. Se, no final do segundo volume, a vontade de destruir as anotações faz parte dessa perturbação, o terceiro tomo é sombrio.
"A Guerra Está em Nós" (68), cujas anotações remetem aos anos de 1942 a 1944, está marcada pela introspecção. As lembranças de Catarina e outros casos amorosos são apenas um dos aspectos, junto com o desencanto diante da nova geração, despolitizada e sem interesses intelectuais, que concorrem para o amargor do autor.
Originariamente programado para sete volumes, "O Espelho Partido", devido à morte de Rebelo, acabou sendo uma trilogia com algumas anotações extras do que seria o quarto tomo, "A Paz Não É Branca", que estão editadas com "A Guerra Está em Nós".
O resultado é um desenho em fragmentos, feito com estilhaços de gêneros literários, de uma época e da própria vida do escritor neste que "é tempo de partido,/ tempo de homens partidos", para lembrar os versos de Carlos Drummond de Andrade, seu contemporâneo e personagem.

O Trapicheiro


    
Quanto: R$ 48 (504 págs.)

A Mudança


    
Quanto: R$ 48 (592 págs.)

A Guerra Está em Nós


    
Quanto: R$ 49 (608 págs.)
Autor: Marques Rebelo
Editora: Nova Fronteira




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