São Paulo, quarta-feira, 26 de outubro de 2011

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CRÍTICA SHOW

Sem sopros, Ron Carter encontra a essência de Miles

RAMIRO ZWETSCH
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O contrabaixista norte-americano Ron Carter dispensou o trompete ou qualquer outro instrumento de sopro para homenagear Miles Davis e, a partir dessa opção, alcançou tudo aquilo que o trompetista (morto em 1991, aos 65 anos) tanto prezava na música: surpresa, ousadia e transformação.
O show "Dear Miles" -que trouxe três apresentações, de sexta a domingo, ao Sesc Pinheiros, espaço que abriga a exposição "Queremos Miles"- desafiou os fãs com uma concepção jazzística nada convencional. Acompanhado de três músicos -o baterista Payton Crossley, o percussionista Rolando Morales-Matos e a pianista Irene Rosnes-, Carter colocou o seu instrumento à frente dos arranjos.
Sem os ataques incendiários dos metais e com o piano mais percussivo do que melódico, o calor vinha das linhas e improvisos sugeridos pelo movimento das quatro cordas do contrabaixo. No show de domingo passado, o tema de abertura se estendeu por cerca de 20 minutos em uma dinâmica de tirar o fôlego. Mudanças de andamento, instrumentos em constante troca de função, das inevitáveis referências à bossa nova ao groove parente do hip-hop.
Na versão do popular standard "My Funny Valentine" (1937), uma rara e bela exceção: massageada pelas teclas de Irene Rosnes, a melodia fluiu obediente às convenções do jazz, sem comprometer o delírio do público. A cadência e o ritmo estiveram na alma do show.
Sem exibir virtuosismo gratuito, Payton Crossley surpreendeu com um solo que privilegiou a sutileza. O porto-riquenho Rolando Morales-Matos carregou no tempero sem cair nos clichês do jazz latino. Ovacionado, Ron Carter voltou para o bis sozinho e retribuiu os eufóricos aplausos com uma leitura arrebatadora do clássico da canção popular norte-americana "You Are My Sunshine", de 1939.
Aos 74 anos, o contrabaixista tinha que se diferenciar em meio a tantas homenagens recentes a Miles Davis. No Brasil, os repertórios dos aclamados discos "A Kind of Blue" e "Tutu" foram revisitados pelo baterista Jimmy Cobb e pelo baixista Marcus Miller, em 2009 e neste ano, respectivamente.
Ao descartar um repertório imediatamente reconhecível e um trompetista que repetisse os trejeitos do gênio, Ron Carter encontrou no caminho menos óbvio um ótimo atalho para a essência transformadora de Miles.

AVALIAÇÃO ótimo


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