São Paulo, sábado, 26 de novembro de 2005

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LITERATURA

Pesquisador Jean Canavaggio critica leituras enviesadas da obra do espanhol, feitas a partir de imprecisões biográficas

"Cervantes foi vítima de transfiguração"

DA REPORTAGEM LOCAL

"Eu sou aquele que a invenção excede", escreveu Miguel de Cervantes, no prólogo a um livro seu bem menos conhecido, "Viagem ao Parnasso". Ainda que estivesse falando de suas próprias invenções, a frase não deixa de guardar certo caráter visionário.
Ao menos é isso o que pensa Jean Canavaggio, crítico em relação às inúmeras inverdades sobre Cervantes que se perpetuaram ao longo dos séculos. "Através da exploração de suas experiências, sobretudo as desgraças, elaborou-se e ainda se elabora uma transfiguração de Cervantes, com a utilização do Quixote como projeção do escritor." Mas quais seriam essas possíveis inverdades, esses mitos que assolam a figura do autor?
O primeiro deles é a suspeita de que Cervantes fosse converso, ou seja, que fosse de origem judaica e se tivesse convertido ao cristianismo. "Não se pode descartar a existência de antepassados conversos em sua família, mas não creio que se possa fazer de sua possível origem conversa uma chave explicativa de sua obra", diz Canavaggio.
O segundo, sua possível homossexualidade, alimentada por uma campanha levada contra ele em Argel, acusando-o de manter relações justamente com aqueles que o encarceravam. Isso justificaria a benevolência com que foi tratado ao lhe designarem as punições pelas tentativas de fuga.
Canavaggio tampouco nega essa possibilidade, mas denuncia: "a partir de uns sonetos sarcásticos que lhe dirigiram, ou do fato de que não teve filhos com sua mulher, ou da maneira como Dom Quixote forja a personalidade de Dulcinéia, se está elaborando um dossiê clínico de Cervantes, e isso é um absurdo".
Por fim, e talvez mais relevante que as anteriores, está a posição de Cervantes frente a seu tempo. Há os que vêem nele um conformista, porta-voz das idéias monarquistas de sua época, o que justificaria seu entusiasmo em Lepanto, e os que o vêem como um subversivo desconsolado.
Canavaggio, mais uma vez, relativiza: "É preciso periodizar a atitude de Cervantes diante dos diversos acontecimentos de sua vida. Não podemos submetê-lo a uma interpretação anacrônica a partir de nosso próprio modo de entender as coisas". E completa: "Hoje vemos que não se pode reduzir uma personalidade tão complexa a essas estampas".
Sim, o francês vê uma evolução na compreensão de Cervantes e sua obra, o que não deixa de ser surpreendente, dados os inumeráveis estudos que foram feitos sobre ambos ao longo desses quatro séculos. Mas não se preocupa com a possibilidade de que um dia os esgotemos. "Sua personalidade nos aparece sempre envolta em mistério. Como o do Quixote, um mistério que nos faz ir e vir entre adesão e distância, entre riso e melancolia." (JULIÁN FUKS)


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