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LITERATURA
Pesquisador Jean Canavaggio critica leituras enviesadas da obra do espanhol, feitas a partir de imprecisões biográficas
"Cervantes foi vítima de transfiguração"
DA REPORTAGEM LOCAL
"Eu sou aquele que a invenção
excede", escreveu Miguel de Cervantes, no prólogo a um livro seu
bem menos conhecido, "Viagem
ao Parnasso". Ainda que estivesse
falando de suas próprias invenções, a frase não deixa de guardar
certo caráter visionário.
Ao menos é isso o que pensa
Jean Canavaggio, crítico em relação às inúmeras inverdades sobre
Cervantes que se perpetuaram ao
longo dos séculos. "Através da exploração de suas experiências, sobretudo as desgraças, elaborou-se
e ainda se elabora uma transfiguração de Cervantes, com a utilização do Quixote como projeção do
escritor." Mas quais seriam essas
possíveis inverdades, esses mitos
que assolam a figura do autor?
O primeiro deles é a suspeita de
que Cervantes fosse converso, ou
seja, que fosse de origem judaica e
se tivesse convertido ao cristianismo. "Não se pode descartar a
existência de antepassados conversos em sua família, mas não
creio que se possa fazer de sua
possível origem conversa uma
chave explicativa de sua obra", diz
Canavaggio.
O segundo, sua possível homossexualidade, alimentada por uma
campanha levada contra ele em
Argel, acusando-o de manter relações justamente com aqueles
que o encarceravam. Isso justificaria a benevolência com que foi
tratado ao lhe designarem as punições pelas tentativas de fuga.
Canavaggio tampouco nega essa possibilidade, mas denuncia:
"a partir de uns sonetos sarcásticos que lhe dirigiram, ou do fato
de que não teve filhos com sua
mulher, ou da maneira como
Dom Quixote forja a personalidade de Dulcinéia, se está elaborando um dossiê clínico de Cervantes, e isso é um absurdo".
Por fim, e talvez mais relevante
que as anteriores, está a posição
de Cervantes frente a seu tempo.
Há os que vêem nele um conformista, porta-voz das idéias monarquistas de sua época, o que
justificaria seu entusiasmo em Lepanto, e os que o vêem como um
subversivo desconsolado.
Canavaggio, mais uma vez, relativiza: "É preciso periodizar a atitude de Cervantes diante dos diversos acontecimentos de sua vida. Não podemos submetê-lo a uma interpretação anacrônica a
partir de nosso próprio modo de
entender as coisas". E completa:
"Hoje vemos que não se pode reduzir uma personalidade tão
complexa a essas estampas".
Sim, o francês vê uma evolução
na compreensão de Cervantes e
sua obra, o que não deixa de ser
surpreendente, dados os inumeráveis estudos que foram feitos
sobre ambos ao longo desses quatro séculos. Mas não se preocupa
com a possibilidade de que um
dia os esgotemos. "Sua personalidade nos aparece sempre envolta
em mistério. Como o do Quixote,
um mistério que nos faz ir e vir
entre adesão e distância, entre riso
e melancolia."
(JULIÁN FUKS)
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