São Paulo, sábado, 26 de novembro de 2005

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Biografia "rival" gera debate sobre métodos de pesquisa histórica

DA REPORTAGEM LOCAL

Disputando palmo a palmo o espaço nas prateleiras, um outro livro que aborda as peripécias do escritor espanhol se apresenta como opção ao leitor brasileiro. Trata-se de "As Vidas de Miguel de Cervantes", de Andrés Trapiello, lançado há pouco mais de um mês pela editora José Olympio.
Não há de ser uma disputa amigável entre lombadas de livro. O espanhol Trapiello, mais versado na ficção, e o acadêmico francês Canavaggio vêm se desentendendo há longos anos, num conflito do qual não escapam nem sequer seus prólogos. E as edições brasileiras não saem impunes.
Trapiello afirma que o trabalho de Canavaggio é "absolutamente desprezível", tendo sido "saqueado" inteiramente de Astrana Marín. Defende, também, uma atitude mais franca e livre do biógrafo em relação ao objeto retratado, a partir de uma máxima tomada do próprio Cervantes: "Quando se sabe sentir, sabe-se dizer". Assim, justificaria algumas liberdades que tomou.
Canavaggio é menos direto, não cita nomes, mas sua defesa também se esconde nas entrelinhas das primeiras páginas, a julgar pelo que sabemos de suas acusações a Trapiello. Por exemplo, critica aqueles que tentam "descobrir por trás da trama dos acontecimentos a personalidade de quem os viveu, mesmo sob o risco de construir uma representação fantasiosa". E, em defesa velada do próprio estilo, cita Paul Veyne: "explicar mais é contar melhor".
De qualquer forma, ignorando-se momentos em que ambos parecem sucumbir a picuinhas pessoais ou interpretativas, o que sobrevém é uma interessante discussão sobre o comportamento ideal de um biógrafo: se deve entregar-se às próprias suposições e buscar transcender aquilo que os documentos parecem demonstrar, ou se deve ater-se a eles e levantar todas as possibilidades que se possam depreender.
O curioso da história, entretanto, é a surpresa que o leitor pode ter ao transpassar essas páginas iniciais. O que nos é dado ler são duas biografias bastante semelhantes em seu conteúdo, e mesmo na forma de abordá-lo.
O estilo supostamente romanceado de Trapiello dá espaço a constantes relativizações e a elipses que recebem a devida explicação de que, daquele período, pouco ou nada se sabe sobre Cervantes. Sua veia de escritor acaba aparecendo mais nas descrições dos lugares que o biógrafo visita hoje, e em suposições de como seriam tais lugares na época de Cervantes. Também aparece nas concessões que Trapiello se faz, de transitar livremente por diversas épocas, sem prender-se tanto à cronologia, o que não deixa de ser recurso ensaístico.
Canavaggio, por sua vez, prefere as explicações políticas e conjunturais da época a essa descrição da mudança dos tempos. Seu livro prima, também, por uma maior organização, contando com uma cronologia datada e com um índice mais preciso. Não são tão poucos, porém, os momentos em que o próprio autor se entrega a elucubrações pouco objetivas, quase rendendo-se ao que ele mesmo condena em seu prólogo. (JF)


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