São Paulo, sábado, 26 de novembro de 2005

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LIVROS

ROMANCE


"Bandeira Negra, Amor" mostra relação tensa e afetiva entre advogado negro e policial branca no Rio de Janeiro

Ficção em ritmo de "thriller" discute o preconceito racial

MARÇAL AQUINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Lelé, Serrote e Bronha, três adolescentes sem ficha criminal do morro do Borel, no Rio, são seqüestrados e executados com requintes de crueldade, como costuma dizer a crônica policial.
Quase banal de tão cotidiano, o evento serve de ponto de partida para o livro "Bandeira Negra, Amor", segunda incursão do jornalista carioca Fernando Molica no território da ficção.
Os crimes, porém, aos poucos se deslocam para a condição de fio condutor da narrativa, dando lugar ao tema que realmente interessa ao autor: o preconceito racial no Brasil.
Praticante do "jornalismo investigativo", gênero quase em desuso na imprensa, Molica deixa sua prosa se contaminar pela linguagem e, sobretudo, pelo ritmo de uma apuração jornalística.
O resultado é um texto ágil e tenso, que flui num andamento de "thriller" para contar a história de Fred, um advogado negro, militante da causa, que vive um atormentado romance com a branca Beatriz.
E a cor da pele nem é o maior obstáculo que o casal tem de enfrentar: o que na verdade os obriga a ocultar a paixão na clandestinidade de amantes é o fato de Beatriz pertencer ao quadro de oficiais da Polícia Militar, que tem em Fred um feroz opositor dos abusos cometidos no dia-a-dia pela corporação.
Com esses ingredientes, "Bandeira Negra, Amor" se constitui num exame das relações raciais no Rio contemporâneo, relações mediadas por um componente que ameaça igualmente brancos e negros e que só tem cor quando se tinge de sangue: a violência.
Fred conheceu o preconceito na infância, em sua própria casa, com os esforços da mãe para fazê-lo passar-se por branco. Mas ele nunca se sentiu um branco. Ao contrário: quando cresce, Fred procura afirmar-se como um negro e, em paralelo ao seu trabalho como advogado, engaja-se em uma entidade de defesa de direitos civis.
É essa militância que vai envolvê-lo na investigação que busca os assassinos dos três adolescentes, e o conflito se estabelece quando a suspeita da execução recai sobre a PM, colocando Fred e Beatriz num confronto ético.
Com habilidade de jornalista experiente, Molica evita qualquer maniqueísmo no tratamento das questões e contradições que coloca diante dos amantes -e dos leitores.
É como se lançasse um olhar de repórter para a realidade que criou. E os fatos dessa ficção colada ao real acabam soando assustadoramente familiares.
Atento ao cenário que cerca sua trama, Molica faz de "Bandeira Negra, Amor" um passeio pelas cores, odores e sons do Rio e, em igual medida, um mergulho no submundo carioca, com seus personagens típicos.
Há espaço até para Arthur Friedenreich, craque de futebol do passado que sofria com suas origens mestiças, cuja aparição serve de contraponto simbólico a Fred na sua busca por afirmação como negro.
O domínio narrativo de Fernando Molica permite que as duas linhas narrativas do livro -a paixão de Fred e Bia e a busca pelos assassinos- se entrelacem, sem perda da tensão característica de um "thriller".
O desfecho de sua história se subordina ao mundo real, deixando um travo de impotência tanto para os personagens quanto para os leitores. Há coerência nisso, já que num texto de corte realista qualquer outra escolha poderia soar artificial. E esse é um dos campos de força do relato.
Curioso o embate entre ficção e realidade. Quando escreveu o livro-reportagem "O Homem que Morreu Três Vezes", Molica manejou um enredo que roçava a inverossimilhança.
Afinal, reconstituía a trajetória do advogado gaúcho Antonio Expedito Carvalho Perera, um personagem aventuresco, que de militante da luta armada no período da ditadura militar converteu-se, depois de exilado, em pelo menos dois outros personagens, e chegou a ser conhecido como o "Chacal brasileiro". Coisa de cinema.
Agora, com "Bandeira Negra", o autor pode experimentar a sensação inversa, por ter criado um relato ficcional que o tempo inteiro soa como real, incomodamente real. A ponto de tornar irônica a nota final do livro, que informa tratar-se de uma obra de ficção. Coisas da literatura.


Marçal Aquino é escritor e roteirista de cinema. Seu livro mais recente é "Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios" (Companhia das Letras)

Bandeira Negra, Amor
  
Autor: Fernando Molica
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 35,90 (220 págs.)


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