|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS
ROMANCE
"Bandeira Negra, Amor" mostra relação tensa e afetiva entre advogado negro e policial branca no Rio de Janeiro
Ficção em ritmo de "thriller" discute o preconceito racial
MARÇAL AQUINO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Lelé, Serrote e Bronha, três
adolescentes sem ficha criminal do morro do Borel, no Rio, são
seqüestrados e executados com
requintes de crueldade, como
costuma dizer a crônica policial.
Quase banal de tão cotidiano, o
evento serve de ponto de partida
para o livro "Bandeira Negra,
Amor", segunda incursão do jornalista carioca Fernando Molica
no território da ficção.
Os crimes, porém, aos poucos
se deslocam para a condição de
fio condutor da narrativa, dando
lugar ao tema que realmente interessa ao autor: o preconceito racial no Brasil.
Praticante do "jornalismo investigativo", gênero quase em desuso na imprensa, Molica deixa
sua prosa se contaminar pela linguagem e, sobretudo, pelo ritmo
de uma apuração jornalística.
O resultado é um texto ágil e
tenso, que flui num andamento
de "thriller" para contar a história
de Fred, um advogado negro, militante da causa, que vive um atormentado romance com a branca
Beatriz.
E a cor da pele nem é o maior
obstáculo que o casal tem de enfrentar: o que na verdade os obriga a ocultar a paixão na clandestinidade de amantes é o fato de
Beatriz pertencer ao quadro de
oficiais da Polícia Militar, que tem
em Fred um feroz opositor dos
abusos cometidos no dia-a-dia
pela corporação.
Com esses ingredientes, "Bandeira Negra, Amor" se constitui
num exame das relações raciais
no Rio contemporâneo, relações
mediadas por um componente
que ameaça igualmente brancos e
negros e que só tem cor quando se
tinge de sangue: a violência.
Fred conheceu o preconceito na
infância, em sua própria casa,
com os esforços da mãe para fazê-lo passar-se por branco. Mas ele
nunca se sentiu um branco. Ao
contrário: quando cresce, Fred
procura afirmar-se como um negro e, em paralelo ao seu trabalho
como advogado, engaja-se em
uma entidade de defesa de direitos civis.
É essa militância que vai envolvê-lo na investigação que busca os
assassinos dos três adolescentes, e
o conflito se estabelece quando a
suspeita da execução recai sobre a
PM, colocando Fred e Beatriz
num confronto ético.
Com habilidade de jornalista
experiente, Molica evita qualquer
maniqueísmo no tratamento das
questões e contradições que coloca diante dos amantes -e dos leitores.
É como se lançasse um olhar de
repórter para a realidade que
criou. E os fatos dessa ficção colada ao real acabam soando assustadoramente familiares.
Atento ao cenário que cerca sua
trama, Molica faz de "Bandeira
Negra, Amor" um passeio pelas
cores, odores e sons do Rio e, em
igual medida, um mergulho no
submundo carioca, com seus personagens típicos.
Há espaço até para Arthur Friedenreich, craque de futebol do
passado que sofria com suas origens mestiças, cuja aparição serve
de contraponto simbólico a Fred
na sua busca por afirmação como
negro.
O domínio narrativo de Fernando Molica permite que as duas linhas narrativas do livro -a paixão de Fred e Bia e a busca pelos
assassinos- se entrelacem, sem
perda da tensão característica de
um "thriller".
O desfecho de sua história se subordina ao mundo real, deixando
um travo de impotência tanto para os personagens quanto para os
leitores. Há coerência nisso, já que
num texto de corte realista qualquer outra escolha poderia soar
artificial. E esse é um dos campos
de força do relato.
Curioso o embate entre ficção e
realidade. Quando escreveu o livro-reportagem "O Homem que
Morreu Três Vezes", Molica manejou um enredo que roçava a inverossimilhança.
Afinal, reconstituía a trajetória
do advogado gaúcho Antonio Expedito Carvalho Perera, um personagem aventuresco, que de militante da luta armada no período
da ditadura militar converteu-se,
depois de exilado, em pelo menos
dois outros personagens, e chegou a ser conhecido como o
"Chacal brasileiro". Coisa de cinema.
Agora, com "Bandeira Negra",
o autor pode experimentar a sensação inversa, por ter criado um
relato ficcional que o tempo inteiro soa como real, incomodamente real. A ponto de tornar irônica a
nota final do livro, que informa
tratar-se de uma obra de ficção.
Coisas da literatura.
Marçal Aquino é escritor e roteirista de
cinema. Seu livro mais recente é "Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios" (Companhia das Letras)
Bandeira Negra, Amor
Autor: Fernando Molica
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 35,90 (220 págs.)
Texto Anterior: Vitrine brasileira Próximo Texto: Festival de Brasília: Guerra une cine político e García Márquez Índice
|