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São Paulo, sexta-feira, 26 de dezembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

A grande cena com o pêssego dourado

Para falar tudo: não dava importância às manias do irmão. Achava natural que ele se chateasse quando a mãe me dava um carinho que, aos olhos dele, parecia exagerado ou imerecido. Até que houve o episódio que me marcou de forma contraditória, às vezes me dá um encantamento, às vezes me dá um sentimento de dor e pecado. Pouco a pouco, fui penetrando no subsolo daquele lance, definidor de uma porção de etapas, na minha e na vida dos outros. Foi a partir daquele instante que decidi não tentar compreender mais nada do mundo.
Uma das birras do irmão era a disputa, milímetro a milímetro, do melhor pedaço da torta de maçã, da maior quantidade de banana frita, dos morangos com creme -essas bobagens. Em nossa infância, o pai já era um médico bem-sucedido. As brigas do irmão por migalhas não tinham sentido, eram ridículas. Se o pai estava presente, decidia a questão a favor dele, mandando que a copeira fosse à cozinha e mandasse fazer mais isso ou aquilo. Sem o pai, ele se sentia órfão. A mãe sempre apelava para a justiça na distribuição dos bens que eram fartos em toda a casa. Uma banana frita a mais no meu prato fazia o irmão sofrer, percebia que ela me preferira, diminuindo-lhe um legado de amor, prejudicando-o em qualquer ou com qualquer insignificância. Para ele, em se tratando de mãe, tudo era significante. Um gomo de tangerina ou uma fatia de melão.
Na véspera, a sobremesa tinha sido torta de maçã. Tanto eu como o irmão gostávamos da parte do meio, mais cheia de maçã e com menos massa, e onde havia mais creme chantilly. Distraidamente, a mãe cortou aquele pedaço, estava conversando com o pai, falava de uma prima que breve nos visitaria, eu aproximei meu prato, por gravidade o bocado caiu nele e tudo ficaria nisso se o irmão não tivesse uma atitude surpreendente:
- Não quero esta droga!
O pai pediu que a copeira arranjasse uma fruta ou abrisse uma lata de compota, mas o irmão continuou engrossando, a cara amarrada:
- Não quero mais nada!
E saiu da mesa, com raiva.
Só então a mãe percebeu que havia cometido um crime contra o filho mais velho. Geralmente, ela dividia o pedaço do meio em dois, com a exatidão de um caixa bancário que paga dois cheques iguais a dois clientes simultâneos, nem um tostão a mais ou a menos a cada um. Tentou inutilmente corrigir a distração: eu já tinha comido a minha porção.
No dia seguinte, a cozinheira foi ao mercado comprar frutas e verduras. Quando voltou, por acaso a mãe tinha ido à cozinha atender ao técnico que viera regular alguma coisa no fogão novo que apresentava defeito num dos queimadores. Entre as frutas que a empregada trouxera, havia pêssegos, e eu era tarado por eles.
O irmão preferia peras d'água -fruta que eu sempre abominei. Vez ou outra, o pai mandava uma de suas secretárias buscar peras numa confeitaria da cidade, que importava as melhores, enormes, cheias de caldo, vindas da Argentina, parece, envoltas num papel de seda esverdeado. Meu irmão se fartava. Pêssego era assunto meu.
A mãe falava com o técnico, explicava o defeito do fogão, deixava escapar um pouco de gás -e foi aí que ela viu as frutas trazidas pela empregada.
Eu estava nos fundos do quintal, preocupado em armar uma espécie de cabana, não dessas de índio, vendidas em shopping centers, mas uma cabana de verdade, feita de talos de bambu e folhas de palmeira. Havia duas semanas que vinha trabalhando naquilo. Nem sei por que ou para que fazia aquela cabana, vontade talvez de brincar de náufrago perdido numa ilha, vagamente um instinto de solidão, de isolamento.
Ela me chamou:
-Dá um pulo aqui!
Fui à cozinha, ela já despachava o técnico. Tinha na mão uma pequena sacola. Levou-me para o toalete que servia ao salão. Mandou que eu entrasse. Depois, olhou para os lados, vendo se havia alguém perto. E também entrou. Encostou a porta. Não me lembro se a fechou, acho que não, só encostou. Abriu a sacola e apanhou um pêssego, o maior, o mais belo que vira na vida. E não veria nunca.
-Toma. É todo seu. Coma aqui mesmo. Se ele souber, vai fazer um escândalo.
E saiu. A recomendação estragou, em parte, o prazer de ter comido aquele pêssego dourado e macio, que ela separara para mim, antes que fosse para a mesa e criasse um problema. Mesmo sem apreciá-los com igual intensidade, o irmão exigiria aquela prova de amor e preferência: o melhor e maior sempre para ele.
Foi, realmente, a fruta proibida, nascida da Árvore do Bem e do Mal, aquele pêssego cheio de sumo, lindo em suas cores amarelo-avermelhadas, aquela penugem de seda, um pouco animal. E ele cresceu, cresceu dentro de mim, dentro de minha infância. Eu era o eleito -e o irmão não passava de um réprobo, um condenado. O diabo é que, mesmo sem nunca ter sabido da existência desse pêssego em nossa infância, parece que ele adivinhou tudo. E suspeitou de muito mais, de pêssegos inexistentes.
Mesmo depois que me tornei adulto, nunca tive coragem de lembrar esse pêssego para a mãe. Ela também nunca tocou no assunto. Foi uma espécie de incesto entre nós, que, apesar de não ter consumação, fez o irmão sofrer, se sentir traído e desgraçado -na pior forma de desgraça, que é a de não saber.


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