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CARLOS HEITOR CONY
A grande cena com o pêssego dourado
Para falar tudo: não dava
importância às manias do irmão. Achava natural que ele se
chateasse quando a mãe me dava
um carinho que, aos olhos dele,
parecia exagerado ou imerecido.
Até que houve o episódio que me
marcou de forma contraditória,
às vezes me dá um encantamento, às vezes me dá um sentimento
de dor e pecado. Pouco a pouco,
fui penetrando no subsolo daquele lance, definidor de uma porção
de etapas, na minha e na vida dos
outros. Foi a partir daquele instante que decidi não tentar compreender mais nada do mundo.
Uma das birras do irmão era a
disputa, milímetro a milímetro,
do melhor pedaço da torta de maçã, da maior quantidade de banana frita, dos morangos com
creme -essas bobagens. Em nossa infância, o pai já era um médico bem-sucedido. As brigas do irmão por migalhas não tinham
sentido, eram ridículas. Se o pai
estava presente, decidia a questão
a favor dele, mandando que a copeira fosse à cozinha e mandasse
fazer mais isso ou aquilo. Sem o
pai, ele se sentia órfão. A mãe
sempre apelava para a justiça na
distribuição dos bens que eram
fartos em toda a casa. Uma banana frita a mais no meu prato fazia o irmão sofrer, percebia que
ela me preferira, diminuindo-lhe
um legado de amor, prejudicando-o em qualquer ou com qualquer insignificância. Para ele, em
se tratando de mãe, tudo era significante. Um gomo de tangerina
ou uma fatia de melão.
Na véspera, a sobremesa tinha
sido torta de maçã. Tanto eu como o irmão gostávamos da parte
do meio, mais cheia de maçã e
com menos massa, e onde havia
mais creme chantilly. Distraidamente, a mãe cortou aquele pedaço, estava conversando com o pai,
falava de uma prima que breve
nos visitaria, eu aproximei meu
prato, por gravidade o bocado
caiu nele e tudo ficaria nisso se o
irmão não tivesse uma atitude
surpreendente:
- Não quero esta droga!
O pai pediu que a copeira arranjasse uma fruta ou abrisse
uma lata de compota, mas o irmão continuou engrossando, a
cara amarrada:
- Não quero mais nada!
E saiu da mesa, com raiva.
Só então a mãe percebeu que
havia cometido um crime contra
o filho mais velho. Geralmente,
ela dividia o pedaço do meio em
dois, com a exatidão de um caixa
bancário que paga dois cheques
iguais a dois clientes simultâneos,
nem um tostão a mais ou a menos
a cada um. Tentou inutilmente
corrigir a distração: eu já tinha
comido a minha porção.
No dia seguinte, a cozinheira foi
ao mercado comprar frutas e verduras. Quando voltou, por acaso
a mãe tinha ido à cozinha atender ao técnico que viera regular
alguma coisa no fogão novo que
apresentava defeito num dos
queimadores. Entre as frutas que
a empregada trouxera, havia pêssegos, e eu era tarado por eles.
O irmão preferia peras d'água
-fruta que eu sempre abominei.
Vez ou outra, o pai mandava
uma de suas secretárias buscar
peras numa confeitaria da cidade, que importava as melhores,
enormes, cheias de caldo, vindas
da Argentina, parece, envoltas
num papel de seda esverdeado.
Meu irmão se fartava. Pêssego era
assunto meu.
A mãe falava com o técnico, explicava o defeito do fogão, deixava escapar um pouco de gás -e
foi aí que ela viu as frutas trazidas pela empregada.
Eu estava nos fundos do quintal, preocupado em armar uma
espécie de cabana, não dessas de
índio, vendidas em shopping centers, mas uma cabana de verdade,
feita de talos de bambu e folhas de
palmeira. Havia duas semanas
que vinha trabalhando naquilo.
Nem sei por que ou para que fazia
aquela cabana, vontade talvez de
brincar de náufrago perdido numa ilha, vagamente um instinto
de solidão, de isolamento.
Ela me chamou:
-Dá um pulo aqui!
Fui à cozinha, ela já despachava o técnico. Tinha na mão uma
pequena sacola. Levou-me para o
toalete que servia ao salão. Mandou que eu entrasse. Depois,
olhou para os lados, vendo se havia alguém perto. E também entrou. Encostou a porta. Não me
lembro se a fechou, acho que não,
só encostou. Abriu a sacola e apanhou um pêssego, o maior, o mais
belo que vira na vida. E não veria
nunca.
-Toma. É todo seu. Coma aqui
mesmo. Se ele souber, vai fazer
um escândalo.
E saiu. A recomendação estragou, em parte, o prazer de ter comido aquele pêssego dourado e
macio, que ela separara para
mim, antes que fosse para a mesa
e criasse um problema. Mesmo
sem apreciá-los com igual intensidade, o irmão exigiria aquela
prova de amor e preferência: o
melhor e maior sempre para ele.
Foi, realmente, a fruta proibida,
nascida da Árvore do Bem e do
Mal, aquele pêssego cheio de sumo, lindo em suas cores amarelo-avermelhadas, aquela penugem
de seda, um pouco animal. E ele
cresceu, cresceu dentro de mim,
dentro de minha infância. Eu era
o eleito -e o irmão não passava
de um réprobo, um condenado. O
diabo é que, mesmo sem nunca
ter sabido da existência desse pêssego em nossa infância, parece
que ele adivinhou tudo. E suspeitou de muito mais, de pêssegos
inexistentes.
Mesmo depois que me tornei
adulto, nunca tive coragem de
lembrar esse pêssego para a mãe.
Ela também nunca tocou no assunto. Foi uma espécie de incesto
entre nós, que, apesar de não ter
consumação, fez o irmão sofrer, se
sentir traído e desgraçado -na
pior forma de desgraça, que é a de
não saber.
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