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Chico contra o cinismo
O compositor fala com exclusividade à Folha, que o acompanhou durante duas semanas em Paris e em Roma, nas filmagens de um documentário
FERNANDO DE BARROS E SILVA
ENVIADO ESPECIAL A ROMA E A PARIS
"O Lula trouxe o acúmulo de esperanças de muito tempo para
um tempo em que elas não podem mais se realizar." A frase é de
Chico Buarque. Resume, mais do
que uma frustração, uma posição
complexa diante um governo que
ele apoiou e ajudou a eleger, mas
sobre o qual tem hoje várias críticas, embora não o considere o
único nem o maior responsável
pelo fato de o Brasil estar caminhando para uma situação que
chama de "cada vez mais assustadora e irracional".
Chico falou à Folha com exclusividade na quarta-feira da semana passada, durante duas horas,
no seu apartamento em Paris.
Acabava naquele dia uma maratona de gravações de duas semanas, a primeira delas em Roma,
para dois de uma série de dez programas sobre sua obra, mesclando imagens de arquivo com depoimentos, que a DirecTV vai levar ao ar a partir de janeiro.
A Folha o acompanhou durante
todas as gravações, a maior parte
delas com cenas de Chico caminhando (o que mais gosta de fazer, ao lado de jogar bola) pelas
ruas de Roma e de Paris.
É a primeira vez, desde que Lula
foi eleito, que Chico aceita falar
longamente, inclusive sobre a situação do Brasil, assunto sobre o
qual sempre é cobrado. Primeiro,
disse que se sentia "diminuído" e
se abstinha de opinar porque hoje
"tudo passa pela economia" e ele
próprio não costuma dar muita
atenção aos palpites dos leigos.
Mas logo a seguir veio a crítica
central ao que ele diz ver em curso
no país: "Diante da ausência de
perspectiva de mudança social a
curto ou a médio prazo, a sociedade toda está sendo levada a um
certo conformismo, ou mesmo ao
cinismo". Na alta classe média,
disse, "assim como já houve um
esquerdismo de salão, há hoje um
pensamento cada vez mais reacionário. O medo da violência se
transformou em repúdio não só
ao chamado marginal, mas aos
pobres em geral, ao motoboy, ao
sujeito que tem carro velho, ao sujeito que anda mal vestido".
"No meu tempo as moças bonitas eram de esquerda", disse sorrindo. Sejam de esquerda ou de
direita, jovens ou senhoras, as
"moças" continuam encantadas
por Chico. Foi um frisson entre as
funcionárias da embaixada do
Brasil em Roma, todas já coroas,
quando Chico chegou ao belo palácio na Piazza Navona para gravar algumas imagens. Fotos e autógrafos, como sempre.
Uma estudante pernambucana
de 18 anos que vive em Roma passava pela rua e viu Chico na porta.
Ficou paralisada e começou imediatamente a chorar. As lágrimas
escorriam por seu rosto. Não parava por nada neste mundo. Mais
fotos e algumas palavras trocadas
meio sem jeito de parte a parte.
Aos 60 anos, Chico segue sendo
o mesmo menino tímido diante
de qualquer desconhecido. Gosta
mais de ouvir e de observar do
que de falar e ser observado. Não
se sente à vontade quando é abordado na rua. Em seu semi-anonimato nas cidades da Europa, estava na maior parte do tempo descontraído. E às vezes brincalhão
com a equipe do documentário.
Em Roma, a produção alugou
um carrinho de golfe para acompanhar Chico pelas ruas. Entre
uma locação e outra, ele próprio
quis dirigir a engenhoca. Num determinado momento, começou a
cantar um tango em voz alta,
acompanhando o cinegrafista argentino, Mariano, que ia filmando ao seu lado.
Amigos, cinema e futebol
Chico aproveitou a viagem para
rever alguns amigos. Jantou em
Roma com Sergio Bardotti, o criador de "Os Saltimbancos", que ele
adaptou para o Brasil em 1977, fazendo da peça musical uma espécie de "Revolução dos Bichos" ao
contrário e transformando-a
num dos maiores sucessos do teatro infantil no Brasil. Em Roma,
disse Bardotti, "Os Saltimbancos"
nunca emplacaram.
Em Paris, o compositor aproveitou um dos intervalos das gravações para ir ao cinema sozinho.
Assistiu ao novo filme de Bergman, "Sarabanda". Lacônico, disse ter gostado muito: "Bergman é
um mal necessário".
Dias antes, também em Paris,
havia ido visitar a família do fotógrafo Sebastião Salgado, seu velho
amigo. Tião, como ele o chama,
estava viajando, mas Chico foi recebido pela mulher, Lélia, e pelos
dois filhos, Rodrigo e Juliano,
com um lanche à base de baguete,
frios e foie gras. Assistiu ainda pela Globo Internacional ao jogo entre São Paulo e Flamengo pelo
campeonato brasileiro. Torcedor
do Fluminense, não parava de
provocar durante a partida o amigo e assessor Vinícius França, rubro-negro dos mais fanáticos.
O futebol o acompanhou pela
Europa. Em Paris, com a temperatura marcando em média -1º,
não conseguiu parceiros em número suficiente para armar sua
pelada. Um mês antes, Chico havia contraído uma gripe fortíssima justamente por ter jogado a
céu aberto e sob uma garoa fina
num campinho de terra batida na
mesma capital francesa.
Em Roma, porém, jogou bola
duas vezes. Arrumou a pelada no
centro esportivo da RAI, a TV e
rádio estatal italiana. O time brasileiro, com ele à frente, ganhou a
primeira partida dos italianos por
13 a 11 e empatou a segunda por 5
a 5. "Fora de casa, dois bons resultados", disse Chico, sério.
Houve, porém um incidente
que o deixou irritado. O par de
chuteiras velhas e rasgadas de
Chico foram parar no lixo. A camareira do Hotel de Russie, um
dos mais elegantes de Roma, ao
lado da Piazza del Poppolo, achou
que aquilo era um calçado imprestável e deu sumiço. Chico reclamou na recepção, mas em vão.
Não conseguiu recuperar o mimo. "Uma chuteira com história,
mais de 2.000 assistências e duas
centenas de gols", brincou depois
com os amigos.
Um dia antes de partir de Roma,
Chico deu já na madrugada da
sexta-feira, dia 10, uma entrevista
ao vivo para um programa sobre
música brasileira na rádio da RAI.
Falou sempre em italiano fluente.
E ainda ironizou a maneira como
os italianos costumam pronunciar seu nome: "Kiko Bárkue".
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