São Paulo, domingo, 26 de dezembro de 2004

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Chico contra o cinismo

O compositor fala com exclusividade à Folha, que o acompanhou durante duas semanas em Paris e em Roma, nas filmagens de um documentário

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ENVIADO ESPECIAL A ROMA E A PARIS

"O Lula trouxe o acúmulo de esperanças de muito tempo para um tempo em que elas não podem mais se realizar." A frase é de Chico Buarque. Resume, mais do que uma frustração, uma posição complexa diante um governo que ele apoiou e ajudou a eleger, mas sobre o qual tem hoje várias críticas, embora não o considere o único nem o maior responsável pelo fato de o Brasil estar caminhando para uma situação que chama de "cada vez mais assustadora e irracional".
Chico falou à Folha com exclusividade na quarta-feira da semana passada, durante duas horas, no seu apartamento em Paris. Acabava naquele dia uma maratona de gravações de duas semanas, a primeira delas em Roma, para dois de uma série de dez programas sobre sua obra, mesclando imagens de arquivo com depoimentos, que a DirecTV vai levar ao ar a partir de janeiro.
A Folha o acompanhou durante todas as gravações, a maior parte delas com cenas de Chico caminhando (o que mais gosta de fazer, ao lado de jogar bola) pelas ruas de Roma e de Paris.
É a primeira vez, desde que Lula foi eleito, que Chico aceita falar longamente, inclusive sobre a situação do Brasil, assunto sobre o qual sempre é cobrado. Primeiro, disse que se sentia "diminuído" e se abstinha de opinar porque hoje "tudo passa pela economia" e ele próprio não costuma dar muita atenção aos palpites dos leigos.
Mas logo a seguir veio a crítica central ao que ele diz ver em curso no país: "Diante da ausência de perspectiva de mudança social a curto ou a médio prazo, a sociedade toda está sendo levada a um certo conformismo, ou mesmo ao cinismo". Na alta classe média, disse, "assim como já houve um esquerdismo de salão, há hoje um pensamento cada vez mais reacionário. O medo da violência se transformou em repúdio não só ao chamado marginal, mas aos pobres em geral, ao motoboy, ao sujeito que tem carro velho, ao sujeito que anda mal vestido".
"No meu tempo as moças bonitas eram de esquerda", disse sorrindo. Sejam de esquerda ou de direita, jovens ou senhoras, as "moças" continuam encantadas por Chico. Foi um frisson entre as funcionárias da embaixada do Brasil em Roma, todas já coroas, quando Chico chegou ao belo palácio na Piazza Navona para gravar algumas imagens. Fotos e autógrafos, como sempre.
Uma estudante pernambucana de 18 anos que vive em Roma passava pela rua e viu Chico na porta. Ficou paralisada e começou imediatamente a chorar. As lágrimas escorriam por seu rosto. Não parava por nada neste mundo. Mais fotos e algumas palavras trocadas meio sem jeito de parte a parte.
Aos 60 anos, Chico segue sendo o mesmo menino tímido diante de qualquer desconhecido. Gosta mais de ouvir e de observar do que de falar e ser observado. Não se sente à vontade quando é abordado na rua. Em seu semi-anonimato nas cidades da Europa, estava na maior parte do tempo descontraído. E às vezes brincalhão com a equipe do documentário.
Em Roma, a produção alugou um carrinho de golfe para acompanhar Chico pelas ruas. Entre uma locação e outra, ele próprio quis dirigir a engenhoca. Num determinado momento, começou a cantar um tango em voz alta, acompanhando o cinegrafista argentino, Mariano, que ia filmando ao seu lado.

Amigos, cinema e futebol
Chico aproveitou a viagem para rever alguns amigos. Jantou em Roma com Sergio Bardotti, o criador de "Os Saltimbancos", que ele adaptou para o Brasil em 1977, fazendo da peça musical uma espécie de "Revolução dos Bichos" ao contrário e transformando-a num dos maiores sucessos do teatro infantil no Brasil. Em Roma, disse Bardotti, "Os Saltimbancos" nunca emplacaram.
Em Paris, o compositor aproveitou um dos intervalos das gravações para ir ao cinema sozinho. Assistiu ao novo filme de Bergman, "Sarabanda". Lacônico, disse ter gostado muito: "Bergman é um mal necessário".
Dias antes, também em Paris, havia ido visitar a família do fotógrafo Sebastião Salgado, seu velho amigo. Tião, como ele o chama, estava viajando, mas Chico foi recebido pela mulher, Lélia, e pelos dois filhos, Rodrigo e Juliano, com um lanche à base de baguete, frios e foie gras. Assistiu ainda pela Globo Internacional ao jogo entre São Paulo e Flamengo pelo campeonato brasileiro. Torcedor do Fluminense, não parava de provocar durante a partida o amigo e assessor Vinícius França, rubro-negro dos mais fanáticos.
O futebol o acompanhou pela Europa. Em Paris, com a temperatura marcando em média -1º, não conseguiu parceiros em número suficiente para armar sua pelada. Um mês antes, Chico havia contraído uma gripe fortíssima justamente por ter jogado a céu aberto e sob uma garoa fina num campinho de terra batida na mesma capital francesa.
Em Roma, porém, jogou bola duas vezes. Arrumou a pelada no centro esportivo da RAI, a TV e rádio estatal italiana. O time brasileiro, com ele à frente, ganhou a primeira partida dos italianos por 13 a 11 e empatou a segunda por 5 a 5. "Fora de casa, dois bons resultados", disse Chico, sério.
Houve, porém um incidente que o deixou irritado. O par de chuteiras velhas e rasgadas de Chico foram parar no lixo. A camareira do Hotel de Russie, um dos mais elegantes de Roma, ao lado da Piazza del Poppolo, achou que aquilo era um calçado imprestável e deu sumiço. Chico reclamou na recepção, mas em vão. Não conseguiu recuperar o mimo. "Uma chuteira com história, mais de 2.000 assistências e duas centenas de gols", brincou depois com os amigos.
Um dia antes de partir de Roma, Chico deu já na madrugada da sexta-feira, dia 10, uma entrevista ao vivo para um programa sobre música brasileira na rádio da RAI. Falou sempre em italiano fluente. E ainda ironizou a maneira como os italianos costumam pronunciar seu nome: "Kiko Bárkue".

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