São Paulo, domingo, 26 de dezembro de 2004

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O TEMPO E O ARTISTA

Filmes dirigidos por Roberto de Oliveira mesclam imagens de arquivo com depoimentos e serão lançados em DVD no final de 2005

Dez programas refazem carreira de Chico

DO ENVIADO ESPECIAL A ROMA E A PARIS

Chico Buarque gosta de contar uma história que ouviu de uma de suas filhas, a atriz Sílvia Buarque. Ela estava em uma loja de CDs no Rio quando reparou que uma moça a seu lado pegou nas mãos o CD "As Cidades" (1998), recém-lançado. Olhou de um lado, virou do outro, e fez o comentário: "Mas só tem música nova!".
A frase da moça divertiu e ficou famosa na família Buarque. O compositor costuma repeti-la quando quer exemplificar a nostalgia que percebe num público ávido pelo "Chico dos anos 70".
Pois a moça não terá mais do que reclamar. A partir de janeiro, Chico reaparecerá numa série de programas para a TV sobre sua obra, todos eles mesclando imagens de arquivo, muitas delas raras, com depoimentos do autor gravados hoje.
A estréia acontece dentro de um mês, no dia 26, quando a DirecTV exibe o primeiro programa, de um total de dez previstos para pingar em princípio mensalmente, embora só três já tenham sido gravados e estejam certos.
O responsável pelo projeto é o diretor Roberto de Oliveira, ex-vice-presidente da Rede Bandeirantes, que conheceu Chico em 1973, quando inventou e pôs em prática o Circuito Universitário -uma espécie de show itinerante de artistas por cidades do interior do país numa época em que a ditadura fechava as portas da grande mídia para muitos deles.
Desde então, Oliveira produziu vários documentários musicais com Chico, exibidos ao longo dos anos 70 e 80, sobretudo na Bandeirantes. É parte desse acervo, que soma cerca de 30 horas de filmes, mais o acervo pessoal de Chico, com algumas gravações amadoras feitas nos anos 60, que está sendo recuperado.
O diretor define os programas como "um grande testemunho, no qual Chico fala da obra dele, da vida dele, do processo de criação, e se vale da recuperação de imagens e canções do passado para ilustrar as coisas que ele diz hoje".
A intenção de Roberto de Oliveira é lançar no final de 2005 cinco DVDs com os programas exibidos, acrescidos do making of, e repetir a dose, com os outros cinco, até o final de 2006.
O roteiro dos programas segue uma divisão temática. O primeiro, intitulado "Meu Caro Amigo", foi feito em torno das parcerias de Chico. A entrevista e as imagens de hoje que dão o fio condutor foram gravadas no Rio. Chico falou na Biblioteca Nacional, onde se realizou uma exposição sobre sua obra como parte das comemorações dos 60 anos, completados em 19 de junho. A exposição chega a São Paulo em 13 de janeiro.
Tom Jobim, a quem será dedicado um programa inteiro, aparece já neste de abertura, cantando ao piano "Falando de Amor", ao lado de Chico. Francis Hime e Edu Lobo, os dois parceiros mais assíduos, também comparecem, em versões de "Meu Caro Amigo", canção clássica da resistência à ditadura gravada em meados dos 70, e "Choro Bandido", já dos anos 90. Chico canta ainda com Djavan, com a irmã Miúcha e com Dorival Caymmi, entre outros.
No depoimento que dá sobre o velho compositor baiano, Chico o define como "um caso à parte na música brasileira, de tal forma despojado que é difícil até imitá-lo, fazer uma música à la Caymmi". "Não sei de onde vem Caymmi nem sei para onde vai", diz, rendendo homenagens a um grande mestre que, segundo ele, não deixou discípulos na MPB.
O momento mais marcante do programa de estréia talvez seja a aparição histórica ao lado de Elis Regina, num show de 1974, quando interpretaram juntos "Pois É", canção feita em parceria com Tom. Os dois mal se olham no palco. É sabido que Chico e Elis não tinham afinidades e acumularam pinimbas ao longo da vida.
O segundo programa, previsto para fevereiro, foi gravado há dez dias em Paris e vai se chamar "À Flor da Pele", nome de uma das duas versões de "O Que Será", gravada no disco "Geraes" (1976), de Milton Nascimento. O motivo do programa é o conhecido e repisado universo feminino nas canções de Chico, assunto que ele não gosta de abordar.
"Roberto, você vai perguntar e eu vou embatucar, não sei falar sobre isso", avisou Chico antes da gravação, feita num bistrô em frente à ilha de Saint Louis, no centro de Paris. Provocado pelo diretor, acabou comentando várias de suas canções. Disse até que foi em Paris, quando era um menino de 9 ou 10 anos, que viu pela primeira vez mulheres com os seios nus nas capas de revistas.
Houve também momentos de simpático embaraço. Num deles, o diretor deu voltas, tergiversou e lançou uma pergunta a respeito da inspiração de "Morena dos Olhos d'Água", feita em 1966 para a hoje socialite Eleonora Mendes Caldeira. Chico olhou sorrindo para o diretor: "Ô Roberto, a Eleonora Mendes Caldeira é uma senhora. Você não vai querer que eu fale sobre isso nessa altura do campeonato. Nem fica bem". A equipe caiu na gargalhada.
O terceiro programa foi gravado em Roma, uma semana antes. Será exibido em março com o título "Vai Passar", canção de Chico que se tornou um hino da campanha pelas Diretas-Já, em 1984.
O eixo do programa é a política, sobretudo a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Chico morou em Roma durante 13 meses, entre 1969 e 70, numa espécie de exílio voluntário. Já havia morado na cidade quando criança, entre os oito e dez anos, quando seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda lecionou na Universidade de Roma.
"A ditadura me encheu muito o saco, mas também enchi bastante o saco dela", disse Chico na entrevista gravada num hotel. Nela, o compositor passou o período do exílio a limpo, comentou o prazer de caminhar pelas ruas de Roma e disse que o disco "Construção", lançado em 1971, representa um marco em sua obra, uma espécie de perda da inocência presente nas canções do período anterior.
Neste terceiro programa, há algumas imagens históricas. Numa delas, pouco conhecida, Chico caminha pelo palco do Anhembi, em São Paulo, de microfone em microfone, procurando um que não tivesse sido desligado. Era 1973 e ele cantava "Cálice" quando lhe cortaram o som do teatro.
No final de janeiro, Chico deverá gravar a entrevista para o quarto programa da série, sobre literatura. Em princípio, em Portugal, mas o compositor gostaria de estender a viagem a países da África que falam o português, o que está sendo negociado.


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