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O TEMPO E O ARTISTA
Filmes dirigidos por Roberto de Oliveira mesclam imagens de arquivo com depoimentos e serão lançados em DVD no final de 2005
Dez programas refazem carreira de Chico
DO ENVIADO ESPECIAL A ROMA E A PARIS
Chico Buarque gosta de contar
uma história que ouviu de uma de
suas filhas, a atriz Sílvia Buarque.
Ela estava em uma loja de CDs no
Rio quando reparou que uma
moça a seu lado pegou nas mãos o
CD "As Cidades" (1998), recém-lançado. Olhou de um lado, virou
do outro, e fez o comentário:
"Mas só tem música nova!".
A frase da moça divertiu e ficou
famosa na família Buarque. O
compositor costuma repeti-la
quando quer exemplificar a nostalgia que percebe num público
ávido pelo "Chico dos anos 70".
Pois a moça não terá mais do
que reclamar. A partir de janeiro,
Chico reaparecerá numa série de
programas para a TV sobre sua
obra, todos eles mesclando imagens de arquivo, muitas delas raras, com depoimentos do autor
gravados hoje.
A estréia acontece dentro de um
mês, no dia 26, quando a DirecTV
exibe o primeiro programa, de
um total de dez previstos para
pingar em princípio mensalmente, embora só três já tenham sido
gravados e estejam certos.
O responsável pelo projeto é o
diretor Roberto de Oliveira, ex-vice-presidente da Rede Bandeirantes, que conheceu Chico em 1973,
quando inventou e pôs em prática
o Circuito Universitário -uma
espécie de show itinerante de artistas por cidades do interior do
país numa época em que a ditadura fechava as portas da grande mídia para muitos deles.
Desde então, Oliveira produziu
vários documentários musicais
com Chico, exibidos ao longo dos
anos 70 e 80, sobretudo na Bandeirantes. É parte desse acervo,
que soma cerca de 30 horas de filmes, mais o acervo pessoal de
Chico, com algumas gravações
amadoras feitas nos anos 60, que
está sendo recuperado.
O diretor define os programas
como "um grande testemunho,
no qual Chico fala da obra dele, da
vida dele, do processo de criação,
e se vale da recuperação de imagens e canções do passado para
ilustrar as coisas que ele diz hoje".
A intenção de Roberto de Oliveira é lançar no final de 2005 cinco DVDs com os programas exibidos, acrescidos do making of, e
repetir a dose, com os outros cinco, até o final de 2006.
O roteiro dos programas segue
uma divisão temática. O primeiro, intitulado "Meu Caro Amigo",
foi feito em torno das parcerias de
Chico. A entrevista e as imagens
de hoje que dão o fio condutor foram gravadas no Rio. Chico falou
na Biblioteca Nacional, onde se
realizou uma exposição sobre sua
obra como parte das comemorações dos 60 anos, completados em
19 de junho. A exposição chega a
São Paulo em 13 de janeiro.
Tom Jobim, a quem será dedicado um programa inteiro, aparece já neste de abertura, cantando
ao piano "Falando de Amor", ao
lado de Chico. Francis Hime e
Edu Lobo, os dois parceiros mais
assíduos, também comparecem,
em versões de "Meu Caro Amigo", canção clássica da resistência
à ditadura gravada em meados
dos 70, e "Choro Bandido", já dos
anos 90. Chico canta ainda com
Djavan, com a irmã Miúcha e com
Dorival Caymmi, entre outros.
No depoimento que dá sobre o
velho compositor baiano, Chico o
define como "um caso à parte na
música brasileira, de tal forma
despojado que é difícil até imitá-lo, fazer uma música à la Caymmi". "Não sei de onde vem Caymmi nem sei para onde vai", diz,
rendendo homenagens a um
grande mestre que, segundo ele,
não deixou discípulos na MPB.
O momento mais marcante do
programa de estréia talvez seja a
aparição histórica ao lado de Elis
Regina, num show de 1974, quando interpretaram juntos "Pois É",
canção feita em parceria com
Tom. Os dois mal se olham no
palco. É sabido que Chico e Elis
não tinham afinidades e acumularam pinimbas ao longo da vida.
O segundo programa, previsto
para fevereiro, foi gravado há dez
dias em Paris e vai se chamar "À
Flor da Pele", nome de uma das
duas versões de "O Que Será",
gravada no disco "Geraes" (1976),
de Milton Nascimento. O motivo
do programa é o conhecido e repisado universo feminino nas
canções de Chico, assunto que ele
não gosta de abordar.
"Roberto, você vai perguntar e
eu vou embatucar, não sei falar
sobre isso", avisou Chico antes da
gravação, feita num bistrô em
frente à ilha de Saint Louis, no
centro de Paris. Provocado pelo
diretor, acabou comentando várias de suas canções. Disse até que
foi em Paris, quando era um menino de 9 ou 10 anos, que viu pela
primeira vez mulheres com os
seios nus nas capas de revistas.
Houve também momentos de
simpático embaraço. Num deles,
o diretor deu voltas, tergiversou e
lançou uma pergunta a respeito
da inspiração de "Morena dos
Olhos d'Água", feita em 1966 para
a hoje socialite Eleonora Mendes
Caldeira. Chico olhou sorrindo
para o diretor: "Ô Roberto, a Eleonora Mendes Caldeira é uma senhora. Você não vai querer que eu
fale sobre isso nessa altura do
campeonato. Nem fica bem". A
equipe caiu na gargalhada.
O terceiro programa foi gravado em Roma, uma semana antes.
Será exibido em março com o título "Vai Passar", canção de Chico que se tornou um hino da campanha pelas Diretas-Já, em 1984.
O eixo do programa é a política,
sobretudo a ditadura militar no
Brasil (1964-1985). Chico morou
em Roma durante 13 meses, entre
1969 e 70, numa espécie de exílio
voluntário. Já havia morado na cidade quando criança, entre os oito e dez anos, quando seu pai, o
historiador Sérgio Buarque de
Holanda lecionou na Universidade de Roma.
"A ditadura me encheu muito o
saco, mas também enchi bastante
o saco dela", disse Chico na entrevista gravada num hotel. Nela, o
compositor passou o período do
exílio a limpo, comentou o prazer
de caminhar pelas ruas de Roma e
disse que o disco "Construção",
lançado em 1971, representa um
marco em sua obra, uma espécie
de perda da inocência presente
nas canções do período anterior.
Neste terceiro programa, há algumas imagens históricas. Numa
delas, pouco conhecida, Chico caminha pelo palco do Anhembi,
em São Paulo, de microfone em
microfone, procurando um que
não tivesse sido desligado. Era
1973 e ele cantava "Cálice" quando lhe cortaram o som do teatro.
No final de janeiro, Chico deverá gravar a entrevista para o quarto programa da série, sobre literatura. Em princípio, em Portugal,
mas o compositor gostaria de estender a viagem a países da África
que falam o português, o que está
sendo negociado.
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