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CRÍTICA
Segredo de Isaura é disfarçar questão racial
BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA
Por que "Escrava Isaura"
continua encantando? O remake, que estreou em outubro,
conquistou rapidamente o segundo lugar do horário, abalou a
fraca "Começar de Novo" e já está sendo exportada para Portugal. Como é que o melodrama
malcosturado de Bernardo Guimarães -sim, o romance do
qual se originam ambas versões é
um livreco de segunda categoria- conseguiu gerar duas
adaptações tão bem-sucedidas?
Claro, há que guardar as proporções. A de 1976, adaptada por
Gilberto Braga e dirigida por
Herval Rossano, foi um fenômeno televisivo, o primeiro e maior
da TV brasileira: foi exibida em
mais de cem países, vista por milhões de espectadores etc. A de
2004 vem fazendo um sucesso
bem mais modesto, em comparação, mas ainda assim integra o
reduzido time das poucas novelas capazes de fazer frente ao monopólio da Globo: na verdade, a
única neste ano.
Embora o mesmo diretor esteja
nos dois projetos, quase 30 anos
separam as duas novelas -e um
abismo entre os dois brasis que
estavam no ar nessas datas. Mas é
curioso que uma certa sensibilidade em relação ao passado escravocrata se mantenha nesses
dois momentos.
Nos anos 70, a injustiça do destino de Isaura -perseguida pelo
senhor autoritário, subtraída daquilo que tinha por "direito" (de
ser branca e criada dentro da casa, apesar de escrava), vítima da
arbitrariedade- de alguma forma reverberava na sensação de
opressão que se vivia sob o regime militar. O sofrimento de Isaura assemelhava-se ao de todos e,
portanto, a escravidão servia como metáfora.
Em 2004, as injustiças e as arbitrariedades estão todas mais difusas, embora a sensação de vitimização permaneça. A falta de
inimigos claros ou a profusão de
coisas e pessoas perseguidoras
traz uma nostalgia de um adversário único, mau até a raiz dos cabelos, que se possa odiar com intensidade e combater com paixão. Novamente, a escravidão
serve como metáfora de sentimentos difusos.
Em qualquer dos casos, a enormidade da questão racial se oculta na metaforização da opressão.
Penalizar-se por uma escrava
branca -e por uma sensacional
ironia, a protagonista da versão
2004 chama-se justamente Bianca-, atormentada por um senhor que a deseja e que não respeita a virtude da moça é uma
maneira cômoda e sentimental
de revoltar-se com o absurdo da
escravidão (desde que personificada por uma moça boa e branca), mantendo todos os preconceitos de pé.
Isso sem falar na qualidade
quase que apressada do texto original -cheio de passagens
abruptas, mal-explicadas e de
personagens bidimensionais-
que o tornam um prato cheio para as liberdades que, necessariamente, uma adaptação tem de
tomar. Embora o disfarce já venha lá do século 19, a trama rarefeita do texto permite que, a cada
momento, assuma os contornos
mais apropriados.
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