São Paulo, domingo, 26 de dezembro de 2004

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CRÍTICA

Segredo de Isaura é disfarçar questão racial

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

Por que "Escrava Isaura" continua encantando? O remake, que estreou em outubro, conquistou rapidamente o segundo lugar do horário, abalou a fraca "Começar de Novo" e já está sendo exportada para Portugal. Como é que o melodrama malcosturado de Bernardo Guimarães -sim, o romance do qual se originam ambas versões é um livreco de segunda categoria- conseguiu gerar duas adaptações tão bem-sucedidas?
Claro, há que guardar as proporções. A de 1976, adaptada por Gilberto Braga e dirigida por Herval Rossano, foi um fenômeno televisivo, o primeiro e maior da TV brasileira: foi exibida em mais de cem países, vista por milhões de espectadores etc. A de 2004 vem fazendo um sucesso bem mais modesto, em comparação, mas ainda assim integra o reduzido time das poucas novelas capazes de fazer frente ao monopólio da Globo: na verdade, a única neste ano.
Embora o mesmo diretor esteja nos dois projetos, quase 30 anos separam as duas novelas -e um abismo entre os dois brasis que estavam no ar nessas datas. Mas é curioso que uma certa sensibilidade em relação ao passado escravocrata se mantenha nesses dois momentos.
Nos anos 70, a injustiça do destino de Isaura -perseguida pelo senhor autoritário, subtraída daquilo que tinha por "direito" (de ser branca e criada dentro da casa, apesar de escrava), vítima da arbitrariedade- de alguma forma reverberava na sensação de opressão que se vivia sob o regime militar. O sofrimento de Isaura assemelhava-se ao de todos e, portanto, a escravidão servia como metáfora.
Em 2004, as injustiças e as arbitrariedades estão todas mais difusas, embora a sensação de vitimização permaneça. A falta de inimigos claros ou a profusão de coisas e pessoas perseguidoras traz uma nostalgia de um adversário único, mau até a raiz dos cabelos, que se possa odiar com intensidade e combater com paixão. Novamente, a escravidão serve como metáfora de sentimentos difusos.
Em qualquer dos casos, a enormidade da questão racial se oculta na metaforização da opressão. Penalizar-se por uma escrava branca -e por uma sensacional ironia, a protagonista da versão 2004 chama-se justamente Bianca-, atormentada por um senhor que a deseja e que não respeita a virtude da moça é uma maneira cômoda e sentimental de revoltar-se com o absurdo da escravidão (desde que personificada por uma moça boa e branca), mantendo todos os preconceitos de pé.
Isso sem falar na qualidade quase que apressada do texto original -cheio de passagens abruptas, mal-explicadas e de personagens bidimensionais- que o tornam um prato cheio para as liberdades que, necessariamente, uma adaptação tem de tomar. Embora o disfarce já venha lá do século 19, a trama rarefeita do texto permite que, a cada momento, assuma os contornos mais apropriados.


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