São Paulo, terça-feira, 26 de dezembro de 2006

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Análise

Cantor redefiniu parâmetros da música pop no século 20

RONALDO EVANGELISTA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Daqui a muitos anos, quando começarem a surgir os inevitáveis livros-resumo sobre a cultura pop do século 20, os capítulos musicais terão de se limitar a alguns poucos nomes para definir tudo o que aconteceu. Entre os quatro ou cinco artistas mais influentes, ao lado de Beatles, Louis Armstrong e João Gilberto, lá estará o nome dele, logo acima da árvore genealógica de estilos que influenciou: James Brown, o padrinho do soul.
Muitos músicos têm o talento de pegar uma sonoridade e transformá-la em algo seu, mas poucos realmente podem carregar o mérito de haver criado um parâmetro, uma fonte para todos os outros beberem. A influência de James Brown sobre toda a música que surgiu depois foi tanta que não pode ser medida com exatidão. O que pode-se afirmar é que o cantor foi o inventor definitivo de algo que pode ser ouvido em tudo que aconteceu depois, inclusive no Brasil: hip hop, r&b, samba-rock, black Rio, drum'n'bass, pós-punk, miami bass, pancadão -tudo se desenvolveu a partir de suas criações.
Eterno garoto-problema, que em meados dos anos 50 começou sua carreira musical cantando soul mais tradicional, mas sempre com intensidade, Brown em certo momento se deparou com algo novo e percebeu que estava reinventando a roda: soube se agarrar àquilo e se desenvolver junto do novo estilo. Ainda não havia nome, mas hoje já se convencionou chamar aquela música de funk.

"Chega de Saudade"
A mágica começou a acontecer na música "Papa's Got a Brand New Bag", de 1965 -a "Chega de Saudade" do funk. Logo depois, vieram pérolas como "Cold Sweat" e "I Got You (I Feel Good)", e a partir de 1966 suas gravações eram a mais perfeita definição do cálice sagrado de qualquer estilo musical, o tão buscado "groove". Ao lado de músicos como o saxofonista Maceo Parker e o trombonista Fred Wesley, Brown criou uma música crua, intensa, sexual, instintiva e dançante, com forte ênfase nos ritmos criados a partir de improvisações dos músicos e nos sopros com influência de jazz.
Com base nos riffs melódicos do naipe de sopros, nas intrincadas linhas de baixo, nas baterias suingadas e guitarras minimalistas, sua banda tinha sonoridade tão própria que chegou a gravar discos instrumentais. Brown era também produtor prolífico, especialmente de novas cantoras, o que ajudou a espalhar sua música pelo mundo -além, é claro, dos muitos hits que emplacou nas paradas.
Sem ser exatamente um compositor de canções, Brown era intérprete inigualável de suas próprias músicas. Quando cantava, eram tradição seus gritos -para chamar o público à dança nas músicas agitadas, para partir o coração dos ouvintes nas baladas. Suas letras não eram letras, eram frases, expressões, gírias, metáforas, palavras gritadas instintivamente, chamados à ação. Brown mostrava sua alma quando cantava.
Era também ótimo dançarino. No auge do groove de sua banda, estava sempre dançando, girando sobre os próprios pés, balançando as pernas, sacodindo a pélvis, descendo até o chão. Quando estava no palco, James Brown parecia possuído. Com olhar de louco, expressão corporal intensa e entrega total à música, no palco ele cantava com a mesma ânsia com que, dizia-se, batia nas mulheres, drogava-se, andava armado, dirigia em alta velocidade e passava temporadas preso.
James Brown era a personificação da música, do sexo, do palco, da vida. Sem ele, a música perde muito. Ainda bem que seu legado está em todo lugar.


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