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Análise
Cantor redefiniu parâmetros da música pop no século 20
RONALDO EVANGELISTA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Daqui a muitos anos,
quando começarem a
surgir os inevitáveis livros-resumo sobre a cultura
pop do século 20, os capítulos
musicais terão de se limitar a
alguns poucos nomes para definir tudo o que aconteceu. Entre
os quatro ou cinco artistas mais
influentes, ao lado de Beatles,
Louis Armstrong e João Gilberto, lá estará o nome dele, logo acima da árvore genealógica
de estilos que influenciou: James Brown, o padrinho do soul.
Muitos músicos têm o talento de pegar uma sonoridade e
transformá-la em algo seu, mas
poucos realmente podem carregar o mérito de haver criado
um parâmetro, uma fonte para
todos os outros beberem. A influência de James Brown sobre
toda a música que surgiu depois
foi tanta que não pode ser medida com exatidão. O que pode-se afirmar é que o cantor foi o
inventor definitivo de algo que
pode ser ouvido em tudo que
aconteceu depois, inclusive no
Brasil: hip hop, r&b, samba-rock, black Rio, drum'n'bass,
pós-punk, miami bass, pancadão -tudo se desenvolveu a
partir de suas criações.
Eterno garoto-problema,
que em meados dos anos 50 começou sua carreira musical
cantando soul mais tradicional,
mas sempre com intensidade,
Brown em certo momento se
deparou com algo novo e percebeu que estava reinventando a
roda: soube se agarrar àquilo e
se desenvolver junto do novo
estilo. Ainda não havia nome,
mas hoje já se convencionou
chamar aquela música de funk.
"Chega de Saudade"
A mágica começou a acontecer na música "Papa's Got a
Brand New Bag", de 1965 -a
"Chega de Saudade" do funk.
Logo depois, vieram pérolas como "Cold Sweat" e "I Got You (I
Feel Good)", e a partir de 1966
suas gravações eram a mais
perfeita definição do cálice sagrado de qualquer estilo musical, o tão buscado "groove". Ao
lado de músicos como o saxofonista Maceo Parker e o trombonista Fred Wesley, Brown criou
uma música crua, intensa, sexual, instintiva e dançante, com
forte ênfase nos ritmos criados
a partir de improvisações dos
músicos e nos sopros com influência de jazz.
Com base nos riffs melódicos
do naipe de sopros, nas intrincadas linhas de baixo, nas baterias suingadas e guitarras minimalistas, sua banda tinha sonoridade tão própria que chegou a
gravar discos instrumentais.
Brown era também produtor
prolífico, especialmente de novas cantoras, o que ajudou a espalhar sua música pelo mundo
-além, é claro, dos muitos hits
que emplacou nas paradas.
Sem ser exatamente um
compositor de canções, Brown
era intérprete inigualável de
suas próprias músicas. Quando
cantava, eram tradição seus
gritos -para chamar o público
à dança nas músicas agitadas,
para partir o coração dos ouvintes nas baladas. Suas letras
não eram letras, eram frases,
expressões, gírias, metáforas,
palavras gritadas instintivamente, chamados à ação.
Brown mostrava sua alma
quando cantava.
Era também ótimo dançarino. No auge do groove de sua
banda, estava sempre dançando, girando sobre os próprios
pés, balançando as pernas, sacodindo a pélvis, descendo até o
chão. Quando estava no palco,
James Brown parecia possuído. Com olhar de louco, expressão corporal intensa e entrega
total à música, no palco ele cantava com a mesma ânsia com
que, dizia-se, batia nas mulheres, drogava-se, andava armado, dirigia em alta velocidade e
passava temporadas preso.
James Brown era a personificação da música, do sexo, do
palco, da vida. Sem ele, a música perde muito. Ainda bem que
seu legado está em todo lugar.
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