São Paulo, quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

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Influência caseira marca trajetória dos Carvalho

"Se Vladimir fosse médico, eu não teria feito cinema", diz Walter, que rodará com o filho Lula adaptação de "Benjamin'

Assinatura do clã está em marcos do cinema nacional como "Cabra Marcado para Morrer", "Central do Brasil", "Carandiru" e "Tropa de Elite"

DA REPORTAGEM LOCAL

Vladimir Carvalho se esquiva de comentar sua influência política sobre o sobrinho Lula, que diz ter aprendido com ele a ser "flamenguista e comunista". "Andei emprestando uns livros a ele", desconversa.
Mas da doutrinação futebolística ele não se furta. "Quando Lula nasceu, levei um enxovalzinho vermelho e preto. Deu tão certo que nem precisei me preocupar com o segundo [sobrinho, Lucas]. Hoje vamos os três juntos ao Maracanã."
Walter Carvalho, pai de Lula, não herdou do irmão Vladimir a paixão rubro-negra, mas está seguro de que deve a ele sua escolha profissional. "Se Vladimir fosse médico, eu não teria feito cinema."
Vem da infância a primeira memória de Walter que relaciona Vladimir e o cinema. Deitado numa rede, na casa em João Pessoa para onde a família se mudara, Walter ouvia palavras como "plano", "corte", "enquadramento".
Elas vinham da sala, onde Vladimir e o amigo Linduarte Noronha tratavam de construir um roteiro de filme.

Kulechov
"Nunca tínhamos feito aquilo nem sequer nada parecido, mas conseguíramos um exemplar do "Tratado de la Realización Cinematográfica", do Leon Kulechov, que seguimos à risca", lembra Vladimir.
O roteiro originou "Aruanda" (1960), dirigido por Noronha, e que se tornou um marco no cinema brasileiro. O título trata da população de uma área remanescente de quilombo na Paraíba, tema que Noronha já abordara antes, numa reportagem jornalística.
O manual de Kulechov foi um dos livros que Vladimir teve de deixar para trás, poucos anos mais tarde, em 1964, no set de outro clássico, "Cabra Marcado para Morrer", de Eduardo Coutinho, de quem era assistente de direção.
Quando o Exército passou a perseguir a equipe, Vladimir providenciou às pressas um abrigo para Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro Teixeira, o "cabra marcado".
Em seguida, ele se refugiou em Campina Grande (PB). De lá seguiu para o Rio de Janeiro, camuflado na fictícia identidade de José Pereira dos Santos.
Instalado no Rio, Vladimir retomou o trabalho em cinema. Foi ser assistente de Arnaldo Jabor em "Opinião Pública" e viveu na cidade até o fim da década de 60, quando a trocou por Brasília, onde reside até hoje.

Foto de Che
A carreira do hoje multipremiado fotógrafo Walter Carvalho partiu do Rio de Janeiro, onde ele foi ser estudante da Escola Superior de Desenho Industrial, depois de também conhecer de perto a repressão do regime militar.
Em 1968, numa passeata em João Pessoa, Walter tentou hastear uma foto de Che Guevara. Foi detido e passou a noite sob golpes de cassetete.
Na semana seguinte, já em casa, Walter tomou o cuidado de jamais tirar a camisa na frente de sua mãe, dona Mazé, a quem não contara sobre a surra que levara.
Décadas depois desse episódio, quando dirigia "Cazuza - O Tempo Não Pára" (2004), Walter se surpreendeu emocionado no set, filmando a cena em que Frejat (Cadu Favero) diz a Lucinha Araújo (Marieta Severo): "Minha mãe é como as outras: ela não sabe de tudo".
Quando decidiu filmar "Incelência para um Trem de Ferro" (1971), Vladimir chamou Walter para ser seu fotógrafo. Sem experiência no cinema e temeroso de errar, Walter titubeou.
Vladimir tranqüilizou-o com a promessa: "Você é meu irmão. Se der errado, não conto a ninguém". Deu tão certo que Walter recebeu um prêmio pelo trabalho e nunca mais se afastou do cinema.
Os convites para filmar foram tantos e em lugares tão dispersos que Walter adotou o hábito de levar Lula para o set, nas férias escolares, para não passar muito tempo longe do filho.
"Eu ia ao trabalho do meu pai, assim como ia ao da minha mãe [a instrumentista Lia Gandelman]", diz Lula.
A sedução do cinema foi maior que a da música -que Lula também "ama"- em grande parte por causa da câmera e de suas promessas de revelar mundos escondidos aos olhos do garoto.

Olho
"Eu via aquele instrumento e o achava enigmático. Dava vontade de colocar o olho ali", diz.
Aos poucos, Lula passou a executar funções nos sets, contrariando as ordens de seu pai, mas com a conivência do restante da equipe.
O filho tornou-se tão perito que o pai acabou se rendendo. No próximo dia 15, ambos começarão a rodar "Budapeste", adaptação do livro homônimo de Chico Buarque. Walter assinará a direção e Lula, a direção de fotografia.
Em fevereiro, quando as filmagens deverão ocorrer em Budapeste, "Tropa de Elite", fotografado por Lula, competirá no Festival de Berlim.
Não é exatamente como internacional que Lula classifica essa etapa de sua carreira, mas sim "com menos fronteiras".
O mundo está ficando pequeno para o clã de cinema dos Carvalho, mas continua fincado em Itabaiana, ecoando a campainha do Cine Teatro Ideal. (SA)


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