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São Paulo, quinta-feira, 27 de fevereiro de 2003

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DANÇA

Corpos digitais


Amparado na tecnologia, Cunningham traz sua companhia ao Brasil, festejando os 50 anos do grupo


INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA

A companhia do americano Merce Cunningham, 83, uma das grandes figuras da dança contemporânea, volta ao Brasil em setembro, na Série Antares de Dança. Os brasileiros poderão ver cinco peças, apresentadas em São Paulo e no Rio de Janeiro, compondo um panorama dos 50 anos da companhia -desde "Suite for Five" (1956) até "Biped" (1999).
Conhecido por seu caráter revolucionário, Cunningham é o criador de trabalhos abstratos, onde dança, música, cenário e luz são independentes um dos outro. Sua parceria com John Cage (1912-92) rendeu a ambos várias inovações: nos anos 40, trabalharam a partir de estruturas rítmicas comuns à dança e à música; na década seguinte, passaram a usar o acaso para definir a composição da coreografia ou da música.
Cunningham, de sua parte, sempre procurou novas possibilidades de movimento, amparando-se na tecnologia: na década de 70, através do vídeo, e, no final da década de 80, com o computador.
Em "Biped", foram usados dois programas de computador. Com o "Life Form", Cunningham criou os movimentos, que depois passaram aos corpos dos bailarinos; com o "Motion Capture", fez o caminho inverso: o movimento passou do real para o virtual. Em cena, bailarinos reais dançam em contraponto com os virtuais.
Recebida no início com estranhamento e protestos, a companhia tornou-se uma referência mundial. O segredo, segundo o próprio Cunningham, é simplesmente "continuar". Ainda muito ativo apesar da idade, e sempre atencioso, o coreógrafo concedeu entrevista para a Folha, por telefone, de Nova York.
 

Folha - Cinquenta anos à frente de uma companhia reconhecida por suas inovações. O que liga as primeiras peças às atuais?
Merce Cunningham -
Eu só... continuei. Mas venho tentando adicionar, a cada nova peça, coisas novas para mim e para a companhia. Não necessariamente criando movimentos mais complexos, mas buscando diferentes caminhos.

Folha - Cage disse que foi só em parceria com o senhor que teve sua atenção despertada para o papel do tempo, em si, como elemento estrutural. E o senhor, o que aprendeu de mais marcante com Cage?
Cunningham -
Aprendi a continuar. Trabalhamos juntos no cruzamento das linguagens, por muitos anos, e também separados. Mas sempre nos pareceu possível continuar e enriquecer nossas investigações, inclusive na maneira de trabalhar a música separada da dança, algo que, quando começamos, era totalmente novo. Para mim, a dança é um campo de exploração contínua.

Folha - Uma vez que dança e música são independentes, como é feita a escolha da música para cada espetáculo?
Cunningham -
Trabalho sempre com compositores contemporâneos, que não compõem necessariamente do mesmo modo que Cage, mas são abertos o suficiente para que possamos trabalhar juntos. Cria-se alguma conexão, não de maneira convencional, mas por meio de perguntas: Como eu coreografo? Quanto tempo tem a peça? Quantos bailarinos?
Com Cage havia, também, perguntas sobre a estrutura de tempo: quantas seções, qual a duração de cada uma. Às vezes eu sabia, às vezes não. Ele ia embora e fazia tudo diferente (risos).
Trabalho com uma situação sonora de duração variável. Os diversos elementos do espetáculo só se encontram no dia da estréia. Não é fácil, mas, depois de tantos anos, isso para nós virou uma espécie de segunda natureza.

Folha - Por muito tempo, o trabalho do senhor foi visto como idiossincrático e "underground". Hoje algumas de suas peças são dançadas por grandes companhias. Como é ver seu trabalho dançado por bailarinos não treinados na sua técnica?
Cunningham -
Não é a mesma coisa. Mas isso acontece também na minha própria companhia. Estamos agora remontando peças antigas, e por mais que procuremos fazê-las como eram, o resultado sai diferente. Não são os mesmos bailarinos. E o melhor é aceitar este fato.
Em outras companhias os movimentos tendem a ser mais angulosos. No final das contas, é como na vida -sempre um pouco diferente, a cada momento.

Folha - O senhor trabalha há muito tempo na interface entre dança e tecnologia. O que a dança tem a ganhar com a tecnologia?
Cunningham -
Desde 1989, faço uso de um programa de computador, "Life Form", para coreografar. Para mim, o computador permite outro tipo de trabalho com o movimento, que me deixa descobrir novos elementos, se eu for capaz de encontrá-los. No computador, a imagem do movimento pode ser imediata e inteiramente visualizada. Mas é só depois do trabalho com os bailarinos, e através deles, que as idéias podem realmente se materializar.


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