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CONTARDO CALLIGARIS
Solidões inúteis
Há homens e mulheres que
não aguentam conviver.
Apaixonam-se, às vezes casam ou
se juntam, mas logo se sentem sufocados. Alegam que falta liberdade, privacidade, silêncio. Algo,
que não é apenas a variedade da
vida sexual, estaria sendo impedido pelo parceiro (ou pela parceira).
Outros conseguem conviver durante anos ou para sempre, mas
com a sensação constante de que
estão sendo limitados, constrangidos. Ou seja, com a idéia ressentida de que, se o consorte não estivesse junto, a vida vingaria como
nunca.
Essa atitude, entre lamento e
reivindicação, é quase sempre
presente quando um dos parceiros tem (ou imagina ter) uma vocação artística.
O diabo é que isso acontece hoje
com frequência crescente. Não me
estranha: numa cultura que valoriza o indivíduo, espera-se de cada um que se faça ouvir e reconhecer pelo que tem de mais singular. Um dos grandes imperativos da época diz que é preciso expressar-se. E acreditamos automaticamente que, se pudéssemos
procurar fundo nas nossas tripas,
encontraríamos pérolas. Eu sou
advogada, mas, lá no fundo, sou
poeta ou romancista. Eu sou engenheiro, mas, lá no fundo, sou
viajante como Amyr Klink. Eu
sou bancário, mas, no fundo, sou
músico e cantor. Eu sou médica,
mas, no fundo, sou dançarina. O
vínculo social tenta nos definir,
mas a criatividade nos resgatará.
Valorizamos o indivíduo em
suas expressões mais singulares.
Portanto as relações sociais nos
parecem sempre suspeitas: será
que elas não ameaçam a expressão de nossa subjetividade, única
e original? É apesar dos outros,
imaginamos, que é possível ser
"nós mesmos" e produzir algo de
valor.
Muitos acabam pensando que,
se eles não seguem sua vocação, é
por causa do parceiro ou do casal.
"Não posso deixar de trabalhar e,
à noite, quando volto para casa,
não dá. Precisaria de solidão para
tocar, escrever, pensar, treinar.
Estou cansado, as crianças pedem
atenção e não há como não conversar." Em suma, as necessidades da vida em família seriam
responsáveis por nossas falências
expressivas.
Às vezes, o parceiro que se considera inibido pelo casal impõe
uma condição: "Quero tempo,
quero um espaço que seja só
meu". E o outro (ou outra), generosamente, aceita e encoraja:
"Claro, vamos alugar um pequeno escritório para você tocar, escrever, pensar e ficar tranquilo
(tranquila) à noite e nos fins de
semana. Ou, então, vamos usar a
poupança, e você fica um ano sem
trabalhar, mas não aqui; na casa
de praia dos tios, lá, sem ninguém".
Surpresa e mistério: quando a
reivindicação é satisfeita, em regra, ocorre um imprevisto. Na
maioria dos casos, o sujeito, aliviado dos deveres da conjugalidade e das responsabilidades sociais, sozinho no lugar e com o
tempo que pediu a Deus, livre e
desembaraçado, não faz nada.
Salvo, talvez, lamentar a época
em que, para dedicar-se a sua
paixão, ele roubava horas ao sono, aos filhos e às obrigações familiares do fim de semana.
O tempo e o espaço reservados
transformam-se na caricatura do
pior vácuo da adolescência: televisão, chat de computador, navegações a esmo na internet, infindáveis jogos de paciência. Em suma, uma preguiça que beira e
anuncia a depressão.
"Agora que poderia, não sei o
que acontece, não saio da cama."
Resumindo: achava que o outro
me impedia de realizar meus sonhos. Mas, uma vez livre de sua
presença, constato que, sem ele
(ou ela), mal consigo me mexer,
perco a vontade. Descubro assim
que: 1) o outro não era minha distração, mas talvez fosse minha
motivação, 2) o tempo e o espaço
que eu exigia, longe dele ou dela,
eram, de fato, tempo e espaço para não fazer nada.
Em suma, quando um parceiro
pede para ficar sozinho e, assim,
dar livre curso a suas veias criativas, expressivas ou meditativas,
seu pedido, embora sincero, alveja quase sempre um ócio avacalhado. Na maioria dos casos, o
outro que queremos eliminar não
é o carrasco de nossas aspirações,
mas o penoso lembrete dessas aspirações. Como assim?
É simples e banal. Um casal serve (também) para isto: o outro é
encarregado de encarnar nossas
próprias exigências, sobretudo as
mais frustrantes. Por exemplo, José se queixa da obsessão de Maria
com a ordem nos armários. Qual
importância? Só dá briga porque
José, de fato, adora ordem e sonha
com fileiras perfeitas de meias,
cuecas, sapatos e camisas, mas
sua vontade morre na praia. Maria torna-se assim a representante do desejo frustrado de José, ou
seja, o lembrete de um encargo
(fazer ordem nos armários) que é
o próprio desejo dele, mas que ele
não consegue cumprir -irritante, não é? O mesmo mecanismo
vale para obrigações maiores e
mais cansativas: se Maria ama e,
portanto, idealiza um pouco José,
ela certamente quer que ele siga
seus anseios artísticos.
Consequência: quando José
procura a solidão "para perseguir
melhor sua vocação", muitas vezes, ele não tenta evitar a diversão
do barulho das crianças, do papo
e da transa compulsória com Maria. Ao contrário, ele pode estar
fugindo de um amor que é incômodo porque lhe lembra seu próprio desejo.
ccalligari@uol.com.br
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