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FERREIRA GULLAR
A cura pelo afeto
Ainda aluna de medicina,
Nise da Silveira se horrorizou ao ver o professor abrir com
um bisturi o corpo de uma jia e
deixar à mostra, pulsando, seu
pequenino coração. Saiu da sala
para vomitar.
Esse fato define a mulher que
iria revolucionar o tratamento da
esquizofrenia e pôr em questão
alguns dogmas estéticos em vigor
mesmo entre artistas antiacadêmicos e críticos de arte.
A mesma sensibilidade à flor da
pele que a fez deixar, horrorizada, a aula de anatomia a levou a
se opor ao tratamento da esquizofrenia em voga na época em que
se formou: o choque elétrico, o
choque insulínico, o choque de colabiosol e, pior do que tudo, a lobotomia, que consistia em secionar uma parte do cérebro do paciente. Tomou-se de revolta contra tais procedimentos, negando-se a aplicá-los nos doentes a ela
confiados. Foi então que o diretor
do hospital, seu amigo, disse-lhe
que não poderia mantê-la no emprego, a não ser em outra atividade que não envolvesse o tratamento médico. - Mas qual?, perguntou ela. - Na terapia ocupacional, respondeu-lhe o diretor.
A terapia ocupacional, naquela
época, consistia em pôr os internados para lavar os banheiros,
varrer os quartos e arrumar as camas. Nise aceitou a proposta e,
em pouco tempo, em lugar de faxina, os pacientes trabalhavam
em ateliês improvisados pintando, desenhando, fazendo modelagem com argila e encadernando
livros. Desses ateliês saíram alguns dos artistas mais criativos
da arte brasileira, cujas obras
passaram a constituir o hoje famosíssimo Museu de Imagens do
Inconsciente do Centro Psiquiátrico Nacional, situado no Engenho de Dentro, no Rio.
É que sua visão da doença mental diferia da aceita por seus companheiros psiquiatras. Enquanto,
para estes, a loucura era um processo progressivo de degenerescência cerebral, que só se poderia
retardar com a intervenção direta
no cérebro, ela via de outro modo,
confiando que o trabalho criativo
e a expressão artística contribuiriam para dar ordem e equilíbrio
ao mundo subjetivo e afetivo tumultuado pela doença. Isto, no
começo, foi pura intuição, que ganhou consistência teórica graças
aos ensinamentos de Jung, sua
teoria do inconsciente coletivo e
das mandalas como formas arquetípicas da expressão.
Por isso mesmo acredito que o
elemento fundamental das realizações e das concepções de Nise
da Silveira era o afeto, o afeto pelo
outro. Foi por não suportar o sofrimento imposto aos pacientes
pelos choques que ela buscou e inventou um outro caminho, no
qual, em vez de ser vítima da truculência médica, o doente se tornou sujeito criador, personalidade livre capaz de criar um universo mágico em que os problemas
insolúveis arrefeciam.
No final dos anos 50, eu era chefe do copidesque do "Jornal do
Brasil", quando certa noite recebi
um telefonema da dra. Nise. Ela
pedia apoio para uma iniciativa
sua que estava sendo hostilizada
por outros médicos do Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro.
É que, tendo observado a melhora
no comportamento de um internado ao conquistar o afeto de um
cão que aparecera no hospital, ela
decidira levar outros cães para
possibilitar esse relacionamento
afetivo com outros internados.
De fato, eles passaram a cuidar
dos animais, a brincar com eles,
tornando-se mais alegres e afáveis. Alguns médicos, porém, consideraram aquilo uma ofensa à
psiquiatria e à sua condição de
doutores, uma vez que substituía
os métodos científicos de tratamento pelo convívio com cachorros. Alguns dos cães apareceram
mortos, envenenados. A publicação da notícia serviu para que parassem de matar os animais.
O trabalho dela sempre gerou
polêmicas. A revelação, nos ateliês de terapia ocupacional, de alguns artistas de extraordinário
talento, logo exaltados por Mário
Pedrosa, nunca foi um assunto
pacífico. Muitos críticos e artistas
de renome negavam-se a admitir
que doentes mentais fossem capazes de fazer arte. Na opinião deles, as pinturas e desenhos de
Emygdio de Barros, Rafael ou
Fernando Diniz não passavam de
criações mórbidas, sem qualquer
mérito artístico.
De fato, mero preconceito fundado em razões ora ideológicas
ora esteticistas, que os impedia de
enxergar a beleza e a expressividade daquelas obras. Tal preconceito foi, até certo ponto, atenuado com o tempo, mas é verdade
também que, mesmo hoje, quando se fala de arte brasileira, esses
artistas não contam e, se contam,
é como um caso à parte.
Deve-se dizer, a bem da verdade, que não era propósito da dra.
Nise, ao realizar aquele trabalho
terapêutico, produzir artistas. Na
sua concepção, a linguagem não-verbal das artes plásticas possibilitava aos doentes mentais expressar vivências conflituais complexas e, graças a isso, reorganizar seu mundo subjetivo, fornecendo ao mesmo tempo ao estudioso da esquizofrenia elementos
reveladores daquilo que Antonin
Artaud definira como "os inumeráveis estados do ser".
Comemora-se neste ano o centenário de nascimento dessa mulher, que soube ser, durante toda
a vida, brava, doce e generosa.
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