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São Paulo, quinta-feira, 27 de março de 2003

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"CARANDIRU"

As memórias do cárcere de Hector Babenco

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

É brutal a força de "Carandiru". Uma força cinematográfica, que vem da imagem, e que se faz complementar à força do livro em que o filme se baseou, o extraordinário "Estação Carandiru", de Drauzio Varella.
Ao lado dos volumes do colunista da Folha Elio Gaspari sobre a ditadura militar ("As Ilusões Armadas") e do de Paulo Lins sobre a vida em meio ao tráfico ("Cidade de Deus"), "Estação Carandiru" é um dos mais importantes esforços literários para uma compreensão da história atual.
Num trabalho de fôlego mais modesto do que os de Gaspari e Lins, mas de resultado não menos contundente, o médico Drauzio Varella se fez escritor e recriou as histórias que ouviu e testemunhou no período em que foi voluntário de um programa de prevenção à Aids no presídio.
O resultado foram pequenas narrativas incríveis, relatadas com linguagem objetiva, e o oferecimento de um novo ponto de vista para o massacre do Carandiru, quando 111 presos foram mortos por forças policiais durante uma rebelião, em 1992.
Nas páginas do livro, as histórias envolvem o leitor. Elas são quase como se fossem "causos", até mesmo pelo fato de Drauzio ter se dado o direito de recorrer ao álibi da ficção. Mas "Carandiru", o filme, mantendo o álibi, perde essa dimensão de quase-mito.
Principalmente para os que leram o livro recentemente, o fim da projeção de "Carandiru" pode trazer uma ponta de decepção. No caminho de um livro para um filme, afinal, há sempre perdas. Mas a sensação se dissipa quando se percebe que as imagens de "Carandiru" se recusam a ir embora. Elas persistem, voltam em ocasiões inesperadas, passam a fazer parte da memória. Sinal de que o filme é uma obra em si.
Enquanto o livro tem importância concreta, sem que tenha feito de Drauzio Varella um artista, o filme é, inegavelmente, a obra de um autor, um sujeito (no sentido amplo) que tem uma história para contar e um ponto de vista sobre ela, identificando-se com a narrativa. "Carandiru" é um filme que assume sua parcialidade em todos os sentidos.
Babenco se enxerga nos párias, nos rejeitados, nos sobreviventes e é daí, exclusivamente, que nasce a possibilidade de (re)existência desses personagens. É como se ele fizesse suas "Memórias do Cárcere", sem que precisasse ter estado preso. O próprio autor já admitiu que "Carandiru" é a continuidade (e não a continuação, por favor) de "Pixote": é como se fosse o retrato do futuro daqueles meninos abandonados. (E é possível, aliás, que esteja nesse ponto a origem do maior problema de "Carandiru": o personagem com menos credibilidade é o único que não pertence ao universo da prisão, o narrador da história, interpretado por Luiz Carlos Vasconcelos.)
Entre as imagens de "Carandiru" que já podem entrar para uma antologia do cinema da retomada estão o show de Rita Cadillac, o jogo de futebol ao som do Hino Nacional e o próprio massacre (além de imagens documentais que encerram o filme e que não descrevo aqui para não diminuir seu impacto). Entre as histórias contadas, não há o que se destacar. São todas fortíssimas. "Carandiru" é, ainda, uma sucessão de grandes interpretações, de rostos consagrados ou desconhecidos.


Carandiru    
Produção: Brasil, 2003
Direção: Hector Babenco
Com: Luiz Carlos Vasconcelos, Milton Gonçalves, Rodrigo Santoro
Quando: estréia em 11 de abril



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