|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FORMA&ESPAÇO
O "Fausto" urbano contemporâneo
GUILHERME WISNIK
COLUNISTA DA FOLHA
Construído sob o Canal
da Mancha, o Eurotúnel é
um símbolo inquestionável, no
plano da engenharia, da renovada euforia capitalista do final do
século. Mais ainda, o ritmo e a escala das novas construções chinesas nos dão a impressão de que a
energia "fáustica" posta em marcha pela modernidade está sendo
recuperada e, até, potencializada.
E que, passado um breve período
de estagnação e incerteza que interrompeu o processo cumulativo
que nos leva da construção dos
Canais de Suez e do Panamá até
a chegada do homem à Lua , retomamos uma etapa de vertiginosa
aceleração construtiva. Porém,
há inúmeros casos recentes que
parecem mostrar que o ímpeto
"fáustico" contemporâneo opera
dentro de uma nova chave: a destruição dos seus próprios monumentos, e não mais do Velho
Mundo, como a Paris de Haussmann (1851-70). Hoje, em inúmeras metrópoles, parece clara uma
tendência a querer curar as cicatrizes causadas pela "tragédia do
desenvolvimento", na forma de
obras não menos monumentais
que as anteriores, mas de teor curativo, que procuram recompor o
tecido urbano fragmentado por
anos de ênfase viária e industrialista no crescimento das cidades.
O caso mais representativo é o
de Boston. Lá, inaugurou-se recentemente uma imensa obra de
substituição de quase 13 km de
auto-estradas (com viadutos e alças de conversão) por um enorme
túnel, que não apenas liberou 1
milhão de m2 de espaços disponíveis a céu aberto, como ampliou a
capacidade do eixo (que era de
200 mil carros por dia, e tinha
uma média de dez horas diárias
de congestionamento). A obra,
que ficou conhecida como "Big
Dig", removeu aproximadamente 3 milhões de m3 de concreto
(dos viadutos), e 12 milhões m3 de
terra. Seu exemplo se tornou modelo -como conceito e engenho
logístico-, e foi adotado recentemente por outras cidades, como
Liverpool. Também em Seul algo
parecido ocorreu, com a diferença
fundamental de que lá, em vez de
se construir um grande túnel para
escoar o tráfego, optou-se pelo incentivo ao transporte coletivo,
com corredores de ônibus, e o barateamento do preço do metrô.
No caso, a transformação inclui
também, além do desmonte de
uma trama dupla de viadutos
(que chegava a 54 m de altura), o
destapamento de um rio, sobre o
qual haviam históricas pontes de
pedra, há 50 anos soterradas.
Por outro lado, existem exemplos na mão contrária, como o
"high line" de Nova York: viaduto
ferroviário com 2,5 km de extensão, que escapou da demolição
pela reivindicação dos moradores
do bairro (Chelsea). Inspirada no
sucesso da "promenade plantée"
de Paris, a comunidade organizada exigiu um concurso de idéias
para a conversão daquela estrutura sucateada em um jardim
suspenso.
Assim, o que se mostra em todos
esses casos de megaintervenções
recentes feitas em países ricos, é
que o "passo atrás" simbólico que
só se realiza por uma técnica ultramoderna procura resgatar dimensões recalcadas do convívio
humano nas grandes cidades: espaços públicos, lazer, vida na escala do pedestre etc. E que esse
movimento global não se dá mais
segundo a polaridade clássica entre o "welfare" europeu e o fascínio americano pelas auto-estradas e paisagens desoladas.
Texto Anterior: O invasor Próximo Texto: É tudo verdade: Avi Mograbi vê os lugares de Israel na história Índice
|