São Paulo, segunda-feira, 27 de março de 2006

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FORMA&ESPAÇO

O "Fausto" urbano contemporâneo

GUILHERME WISNIK
COLUNISTA DA FOLHA

Construído sob o Canal da Mancha, o Eurotúnel é um símbolo inquestionável, no plano da engenharia, da renovada euforia capitalista do final do século. Mais ainda, o ritmo e a escala das novas construções chinesas nos dão a impressão de que a energia "fáustica" posta em marcha pela modernidade está sendo recuperada e, até, potencializada. E que, passado um breve período de estagnação e incerteza que interrompeu o processo cumulativo que nos leva da construção dos Canais de Suez e do Panamá até a chegada do homem à Lua , retomamos uma etapa de vertiginosa aceleração construtiva. Porém, há inúmeros casos recentes que parecem mostrar que o ímpeto "fáustico" contemporâneo opera dentro de uma nova chave: a destruição dos seus próprios monumentos, e não mais do Velho Mundo, como a Paris de Haussmann (1851-70). Hoje, em inúmeras metrópoles, parece clara uma tendência a querer curar as cicatrizes causadas pela "tragédia do desenvolvimento", na forma de obras não menos monumentais que as anteriores, mas de teor curativo, que procuram recompor o tecido urbano fragmentado por anos de ênfase viária e industrialista no crescimento das cidades.
O caso mais representativo é o de Boston. Lá, inaugurou-se recentemente uma imensa obra de substituição de quase 13 km de auto-estradas (com viadutos e alças de conversão) por um enorme túnel, que não apenas liberou 1 milhão de m2 de espaços disponíveis a céu aberto, como ampliou a capacidade do eixo (que era de 200 mil carros por dia, e tinha uma média de dez horas diárias de congestionamento). A obra, que ficou conhecida como "Big Dig", removeu aproximadamente 3 milhões de m3 de concreto (dos viadutos), e 12 milhões m3 de terra. Seu exemplo se tornou modelo -como conceito e engenho logístico-, e foi adotado recentemente por outras cidades, como Liverpool. Também em Seul algo parecido ocorreu, com a diferença fundamental de que lá, em vez de se construir um grande túnel para escoar o tráfego, optou-se pelo incentivo ao transporte coletivo, com corredores de ônibus, e o barateamento do preço do metrô. No caso, a transformação inclui também, além do desmonte de uma trama dupla de viadutos (que chegava a 54 m de altura), o destapamento de um rio, sobre o qual haviam históricas pontes de pedra, há 50 anos soterradas.
Por outro lado, existem exemplos na mão contrária, como o "high line" de Nova York: viaduto ferroviário com 2,5 km de extensão, que escapou da demolição pela reivindicação dos moradores do bairro (Chelsea). Inspirada no sucesso da "promenade plantée" de Paris, a comunidade organizada exigiu um concurso de idéias para a conversão daquela estrutura sucateada em um jardim suspenso.
Assim, o que se mostra em todos esses casos de megaintervenções recentes feitas em países ricos, é que o "passo atrás" simbólico que só se realiza por uma técnica ultramoderna procura resgatar dimensões recalcadas do convívio humano nas grandes cidades: espaços públicos, lazer, vida na escala do pedestre etc. E que esse movimento global não se dá mais segundo a polaridade clássica entre o "welfare" europeu e o fascínio americano pelas auto-estradas e paisagens desoladas.


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