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CECILIA GIANNETTI
Palácio do suicida
Posso vê-lo, mas não ouvi-lo. Ele fala sozinho, ele está morto. E coça muito a cabeça. Não se matou entre Ipanema e Copa
O APARTAMENTO faz cada vez
menos sentido. Olho para o
teto e vejo a pia do banheiro.
No lugar da sala, está um cassino; jogadores e vedetes jantam e serpenteiam alheios à minha presença.
Sobre o tapete pastam três vacas
oriundas do Chipre (parecem bastante tranqüilas), o corredor até a
cozinha tem duas telas de cinema
paralelas no lugar de paredes; exibem à esquerda um documentário
sobre a vida das traças e à direita as
imagens captadas por um circuito
de câmeras instaladas no escritório
de Fernando Sabino. Posso vê-lo,
mas não posso ouvi-lo. Ele fala
sozinho, ele está morto. E coça
muito a cabeça. Não se matou entre
Ipanema e Copa. Vou à cozinha e
retiro da geladeira um pedaço de
queijo rançoso. Tem gosto de cachaça. O apartamento todo é estranho
para mim.
Desde que me despedi do Buraco
Negro das Reputações, o bairro de
Copacabana conhecido como Lido
(Copacabana é dividida em bairros
porque é uma CIDADE), ando pelos
cantos do apê novo no Catete relinchando uma canção co-pa-ca-ba-na-me-en-ga-na, me enganava
quando eu, nada no bolso ou nas
mãos, podia ver todos os dias, de graça, o mar que os gringos pagam centenas de dólares cada para olhar.
Compram o Corcovado, as praias,
o calor, compram coisas que não podem levar, e não levam. E, para nós,
está tudo sempre aqui. Aluguel de
uma cadeira de praia na barraca da
Dudé: R$ 2. Cerveja que a Dudé traz
para quem senta na cadeira de praia
alugada: R$ 3. O gringo só tem essa
mesma praia na base das centenas
de dólar.
No Lido, estava sempre perto a espuma branca, a espuma do mar, a espuma da cerveja, a espuma daquela
vidinha que, curiosamente, ninguém invejava.
No exílio do bairro do Catete, é diferente; preciso vencer um sem-número de ruelas para ver a praia. E
nessas ruas as velhas são infinitamente mais lentas que as de qualquer outro lugar do planeta. Não
têm a alegria mofada das múmias de
cabelo roxo de Copa, não têm poodles encardidos presos à coleira que
as arrastem velozmente pela calçada. O tempo passa tão devagar aqui,
parece que morri.
O jardim do Palácio do suicida, a
beleza do Catete. Bem cuidado, de
um verde cheiroso, que se desprende das folhas em aromas de grama
molhada e terra mexida até meu nariz besta. Não acho bacaninha o tédio da natureza.
A pedra solitária no centro do lago. Coberta de um musgo espesso,
atrai todos os dias um pássaro preto.
É grande, nem corvo nem urubu,
é preto, preto, preto. Passo sem-
pre pelo jardim do suicida a caminho do trabalho e vejo o pássaro
preto pousado sobre a pedra no centro do lago.
De repente ele abre as asas enormes. Mas não voa. Fica de asas suspensas, sem se agitar, exceto pelo bico que abre e fecha como se, mudo,
dissesse alguma coisa.
Às vezes o pássaro parece um pesadelo. Mas ele está ali mesmo, asas
pretas abertas sobre o lago.
Dá para entender porque Getúlio
Vargas se matou no Palácio do
Catete.
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