São Paulo, terça-feira, 27 de março de 2007

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CECILIA GIANNETTI

Palácio do suicida

Posso vê-lo, mas não ouvi-lo. Ele fala sozinho, ele está morto. E coça muito a cabeça. Não se matou entre Ipanema e Copa

O APARTAMENTO faz cada vez menos sentido. Olho para o teto e vejo a pia do banheiro. No lugar da sala, está um cassino; jogadores e vedetes jantam e serpenteiam alheios à minha presença.
Sobre o tapete pastam três vacas oriundas do Chipre (parecem bastante tranqüilas), o corredor até a cozinha tem duas telas de cinema paralelas no lugar de paredes; exibem à esquerda um documentário sobre a vida das traças e à direita as imagens captadas por um circuito de câmeras instaladas no escritório de Fernando Sabino. Posso vê-lo, mas não posso ouvi-lo. Ele fala sozinho, ele está morto. E coça muito a cabeça. Não se matou entre Ipanema e Copa. Vou à cozinha e retiro da geladeira um pedaço de queijo rançoso. Tem gosto de cachaça. O apartamento todo é estranho para mim.
Desde que me despedi do Buraco Negro das Reputações, o bairro de Copacabana conhecido como Lido (Copacabana é dividida em bairros porque é uma CIDADE), ando pelos cantos do apê novo no Catete relinchando uma canção co-pa-ca-ba-na-me-en-ga-na, me enganava quando eu, nada no bolso ou nas mãos, podia ver todos os dias, de graça, o mar que os gringos pagam centenas de dólares cada para olhar.
Compram o Corcovado, as praias, o calor, compram coisas que não podem levar, e não levam. E, para nós, está tudo sempre aqui. Aluguel de uma cadeira de praia na barraca da Dudé: R$ 2. Cerveja que a Dudé traz para quem senta na cadeira de praia alugada: R$ 3. O gringo só tem essa mesma praia na base das centenas de dólar.
No Lido, estava sempre perto a espuma branca, a espuma do mar, a espuma da cerveja, a espuma daquela vidinha que, curiosamente, ninguém invejava.
No exílio do bairro do Catete, é diferente; preciso vencer um sem-número de ruelas para ver a praia. E nessas ruas as velhas são infinitamente mais lentas que as de qualquer outro lugar do planeta. Não têm a alegria mofada das múmias de cabelo roxo de Copa, não têm poodles encardidos presos à coleira que as arrastem velozmente pela calçada. O tempo passa tão devagar aqui, parece que morri.
O jardim do Palácio do suicida, a beleza do Catete. Bem cuidado, de um verde cheiroso, que se desprende das folhas em aromas de grama molhada e terra mexida até meu nariz besta. Não acho bacaninha o tédio da natureza.
A pedra solitária no centro do lago. Coberta de um musgo espesso, atrai todos os dias um pássaro preto. É grande, nem corvo nem urubu, é preto, preto, preto. Passo sem- pre pelo jardim do suicida a caminho do trabalho e vejo o pássaro preto pousado sobre a pedra no centro do lago.
De repente ele abre as asas enormes. Mas não voa. Fica de asas suspensas, sem se agitar, exceto pelo bico que abre e fecha como se, mudo, dissesse alguma coisa.
Às vezes o pássaro parece um pesadelo. Mas ele está ali mesmo, asas pretas abertas sobre o lago.
Dá para entender porque Getúlio Vargas se matou no Palácio do Catete.


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