São Paulo, terça-feira, 27 de março de 2007

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Crítica/teatro

Gerald Thomas retoma o essencial

Em peça em cartaz no Oi Futuro, no Rio, diretor abre caixa-preta de memórias e faz seu teatro sem concessões

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Em uma das gravuras dos "Desastres da Guerra", de Goya, sobre um fundo obscuro de cadáveres ou mascarados, um corpo em decomposição ainda segura uma pena. Com ela, escreveu seu bilhete para a posteridade: "Nada". Desde então, passados holocaustos e atentados, o desespero diante da falta de sentido do mundo ecoa por obras-primas, de "O Grito", de Munch, aos clowns de Beckett. Nestes dias, no Rio, pode ser encontrado na peça "Rainha Mentira" de Gerald Thomas.
Um humor macabro sempre esteve presente nas peças de Thomas, desde "Eletra com Creta". Porém, quando pôde contar com atores carismáticos como Fernanda Torres ou Marco Nanini, diluiu sua angústia em uma triangulação aberta com a platéia, ganhando um público mais amplo, mas perdendo um pouco a essência, a "secura" de sua ópera de imagens arquetípicas, na qual referências pessoais tornam-se um pesadelo coletivo.
Desta vez, porém, a morte de sua mãe, abrindo uma caixa-preta de memórias dolorosas, foi o ponto de partida para o diretor-dramaturgo retomar um teatro sem concessões. Um teatro de imagens desconexas, com personagens como que vindos do limbo da imaginação do autor, antes de estarem definidos; um teatro antes do teatro, feito de memórias uterinas ou de suposições do pós-morte, que se entende pela emoção.
O espetáculo no diminuto espaço do Oi Futuro começa com "Terra em Trânsito", a melhor das quatro peças apresentadas em São Paulo em 2006. Nela, Fabiana Gugli mostra toda a sua habilidade de malabarista do verborrágico fluxo de referências de Thomas, com o hilário contraponto de um ganso, agora feito por Pancho Cappeletti, com muito sabor.
No entanto, tudo soa como aperitivo para depois do intervalo, com essa "Queen Liar" da qual tão pouco se esperava. Aqueles que foram para rir ainda se prendem no início a cartuns nonsense, como Pancho, bombeiro em pleno incêndio, alucinando com um palhaço, feito com dignidade por Fábio Pinheiro -e que outro pesadelo podem ter os que convivem com o horror? Ainda se tenta romper a solenidade da ficção com a metalinguagem quando Anna Américo irrompe em cena como uma camareira tentando pôr ordem no espetáculo; sem deboche, porém.
Mas, pouco a pouco, guiado com serenidade e firmeza pela trilha e pela luz, o público é arrastado ao fundo, tocando a ferida do horror em seu estado puro, além do sofrimento. Falsas memórias, fragmentos de dados sobre um passado perdido, culminam em uma cena de morte com uma densidade que raramente se viu em um palco, nacional ou não, em sua simplicidade inesquecível. "Rainha Mentira" é uma peça para esquecer o "polêmico" Gerald Thomas, quer você simpatize com ele ou não, e reconsiderar o que já sabe sobre ele.
Anos atrás, em "Unglauber", um garçom trazia na bandeja um braço, que segurava um bilhete no qual o autor daria seu recado ao mundo. Nada estava escrito nele. Desta vez, também saindo de dentro de um corpo ferido, o bilhete deixa apenas ecoar rezas, de várias culturas, sem esperança de solução. No sarcástico palco de Thomas, ecoa o goyesco grito do nada.


RAINHA MENTIRA
Quando:
sex., sáb. e dom., às 19h30
Onde: Oi Futuro (r. Dois de Dezembro, 63, RJ, tel. 0/xx/21/3131-3060)
Quanto: R$ 10
Avaliação: ótimo


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