|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/teatro
Gerald Thomas retoma o essencial
Em peça em cartaz no Oi Futuro, no Rio, diretor abre caixa-preta de memórias e faz seu teatro sem concessões
SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Em uma das gravuras dos
"Desastres da Guerra",
de Goya, sobre um fundo obscuro de cadáveres ou
mascarados, um corpo em decomposição ainda segura uma
pena. Com ela, escreveu seu bilhete para a posteridade: "Nada". Desde então, passados holocaustos e atentados, o desespero diante da falta de sentido
do mundo ecoa por obras-primas, de "O Grito", de Munch,
aos clowns de Beckett. Nestes
dias, no Rio, pode ser encontrado na peça "Rainha Mentira"
de Gerald Thomas.
Um humor macabro sempre
esteve presente nas peças de
Thomas, desde "Eletra com
Creta". Porém, quando pôde
contar com atores carismáticos
como Fernanda Torres ou
Marco Nanini, diluiu sua angústia em uma triangulação
aberta com a platéia, ganhando
um público mais amplo, mas
perdendo um pouco a essência,
a "secura" de sua ópera de imagens arquetípicas, na qual referências pessoais tornam-se um
pesadelo coletivo.
Desta vez, porém, a morte de
sua mãe, abrindo uma caixa-preta de memórias dolorosas,
foi o ponto de partida para o diretor-dramaturgo retomar um
teatro sem concessões. Um teatro de imagens desconexas,
com personagens como que
vindos do limbo da imaginação
do autor, antes de estarem definidos; um teatro antes do teatro, feito de memórias uterinas
ou de suposições do pós-morte,
que se entende pela emoção.
O espetáculo no diminuto espaço do Oi Futuro começa com
"Terra em Trânsito", a melhor
das quatro peças apresentadas
em São Paulo em 2006. Nela,
Fabiana Gugli mostra toda a
sua habilidade de malabarista
do verborrágico fluxo de referências de Thomas, com o hilário contraponto de um ganso,
agora feito por Pancho Cappeletti, com muito sabor.
No entanto, tudo soa como
aperitivo para depois do intervalo, com essa "Queen Liar" da
qual tão pouco se esperava.
Aqueles que foram para rir ainda se prendem no início a cartuns nonsense, como Pancho,
bombeiro em pleno incêndio,
alucinando com um palhaço,
feito com dignidade por Fábio
Pinheiro -e que outro pesadelo podem ter os que convivem
com o horror? Ainda se tenta
romper a solenidade da ficção
com a metalinguagem quando
Anna Américo irrompe em cena como uma camareira tentando pôr ordem no espetáculo; sem deboche, porém.
Mas, pouco a pouco, guiado
com serenidade e firmeza pela
trilha e pela luz, o público é arrastado ao fundo, tocando a ferida do horror em seu estado
puro, além do sofrimento. Falsas memórias, fragmentos de
dados sobre um passado perdido, culminam em uma cena de
morte com uma densidade que
raramente se viu em um palco,
nacional ou não, em sua simplicidade inesquecível.
"Rainha Mentira" é uma peça
para esquecer o "polêmico" Gerald Thomas, quer você simpatize com ele ou não, e reconsiderar o que já sabe sobre ele.
Anos atrás, em "Unglauber",
um garçom trazia na bandeja
um braço, que segurava um bilhete no qual o autor daria seu
recado ao mundo. Nada estava
escrito nele. Desta vez, também
saindo de dentro de um corpo
ferido, o bilhete deixa apenas
ecoar rezas, de várias culturas,
sem esperança de solução. No
sarcástico palco de Thomas,
ecoa o goyesco grito do nada.
RAINHA MENTIRA
Quando: sex., sáb. e dom., às 19h30
Onde: Oi Futuro (r. Dois de Dezembro,
63, RJ, tel. 0/xx/21/3131-3060)
Quanto: R$ 10
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Menos exuberante que fãs, Placebo se apresenta em SP Próximo Texto: Circo: Livro sobre o palhaço Piolin é lançado hoje Índice
|