São Paulo, quinta-feira, 27 de março de 2008

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NINA HORTA

O âmago e a comida


"Mas isso tudo é com penso ou sem penso? Se for sem penso, eu cobro mais barato!"

OS LEITORES escreveram muito sobre as três últimas crônicas e me surpreenderam bastante. Primeiro, achei que não acreditariam na história da senhora muito bem-equilibrada que um dia tentou suicídio por causa da pergunta que não pode calar: "E o que eu faço para a janta?".
E, no entanto, havia dentro de cada mulher uma resposta mais ou menos torturada para esse ramerrão repetitivo que pode levar uma pessoa ao desespero.
Uma leitora escreveu (deletei sem querer o nome dela... Por favor, escreva de novo!) dizendo que estava na feira, feliz da vida, sem nem saber o que comprar de tantas verduras frescas e legumes, uma dúvida por excesso de riqueza e oferta.
Conversando com a japonesa da barraca sobre a alegria da fartura, esta lhe disse: "Pois a senhora se engana. Há mulheres que odeiam essa coisa de comida. Outro dia, uma clientezinha minha encostou ali na barraca, triste, deprimida. Perguntei se estava bem e veio uma enxurrada de palavras, uma tristeza só, a desgraça de ter que lidar com uma coisa que não tem fim, que não tem fim...". Esta estava na bica da overdose. A japonesa deu algumas receitinhas fáceis, não se preocupe, tem que relaxar, e a outra continuou lá, como se tivesse espremido cebola no olho.
O outro leitor que me respondeu eu achei muita graça, era o lado das empregadas se defendendo. É o Henrique Aguiar Campos. E ele se lembra que a vizinha da tia estava louca, procurando uma cozinheira. Entrevistou, testou, passou pente-fino na cidade, até que lhe apareceu uma moça de uns 25 anos que parecia levar jeito de cozinheira. A tia explicou tudo direitinho. Muito simples, almoço e jantar, de vez em quando um bolo, ou um cafezinho para visita, um jantar para os filhos... Coisa comum. A moça ouviu qual era o salário, pensou, meditou e saiu com essa: "Mas, dona, isso tudo é com penso ou sem penso? Se for sem penso, eu cobro mais barato!".
E, comenta o leitor, não é maravilhoso? Ela, na sua humildade, querer até baixar o salário para se livrar do penso?
Outra leitora gostou da descrição da Quinta-Feira Santa e mandou um e-mail lindo. "Eu não iria fazer almoço de Páscoa. Preguiça daquele monte de chocolate, de coelho vestidinho de tudo quanto é jeito, pratinhos imitando alface, talheres com cabo de cenoura... E, sobretudo, uma preguiça imensa dos nossos novos sete pecados capitais decretados semana passada. Aí, hoje leio sua coluna sobre a Última Ceia e senti a mesma vontade daquele menino, de receber o Cristo aqui na minha mesa. O arrepio confirmou o desejo."
"Corri ao supermercado, comprei um pernil de carneiro que vou temperar com sal e pimenta-do-reino, cozinhar devagarinho numa panela azul que eu trouxe de longe. Depois de bem cozido, tiro da panela e queimo duas colheres de açúcar naquela borrinha, refogo cebolas pequenas, uma cabeça de alho com a casca, cenourinhas, cogumelos pequenos e redondos, pico duas pimentas dedo-de-moça e, depois de tudo bem refogado, volto com o pernil que não é grande. Coloco um galhinho de alecrim do meu herbário, meio copo de vinho e meio de água. Espero apurar, pico salsa, cebolinha e sirvo com arroz integral quente refogado no gersal e no azeite e salada de rúcula também da pequenininha. Tudo vai ser na minha mesa de madeira lá fora, que eu vou limpar com gosto, fazer um arranjo com flores do meu jardim e brindar o real motivo da festa: receber o Milagreiro em nós e renovar nossos votos de sermos pessoas melhores."
Não é sopa, esses assuntos de comida mexem com o íntimo, com o amor, com a falta de amor, principalmente. Vamos tentar destrinchar esse abacaxi aos poucos. Como pode a mulher que detesta esse assunto doméstico levar a vida adiante sem maiores complicações?

ninahorta@uol.com.br


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