|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NINA HORTA
O âmago e a comida
"Mas isso tudo é com penso ou sem penso?
Se for sem penso, eu cobro mais barato!"
|
OS LEITORES escreveram muito sobre as três últimas crônicas e me surpreenderam
bastante. Primeiro, achei que não
acreditariam na história da senhora
muito bem-equilibrada que um dia
tentou suicídio por causa da pergunta que não pode calar: "E o que eu faço para a janta?".
E, no entanto, havia dentro de cada mulher uma resposta mais ou
menos torturada para esse ramerrão repetitivo que pode levar uma
pessoa ao desespero.
Uma leitora escreveu (deletei sem
querer o nome dela... Por favor, escreva de novo!) dizendo que estava
na feira, feliz da vida, sem nem saber
o que comprar de tantas verduras
frescas e legumes, uma dúvida por
excesso de riqueza e oferta.
Conversando com a japonesa da
barraca sobre a alegria da fartura, esta lhe disse: "Pois a senhora se engana. Há mulheres que odeiam essa coisa de comida. Outro dia, uma
clientezinha minha encostou ali na
barraca, triste, deprimida. Perguntei
se estava bem e veio uma enxurrada
de palavras, uma tristeza só, a desgraça de ter que lidar com uma coisa
que não tem fim, que não tem fim...".
Esta estava na bica da overdose. A japonesa deu algumas receitinhas fáceis, não se preocupe, tem que relaxar, e a outra continuou lá, como se
tivesse espremido cebola no olho.
O outro leitor que me respondeu
eu achei muita graça, era o lado das
empregadas se defendendo. É o
Henrique Aguiar Campos. E ele se
lembra que a vizinha da tia estava
louca, procurando uma cozinheira.
Entrevistou, testou, passou pente-fino na cidade, até que lhe apareceu
uma moça de uns 25 anos que parecia levar jeito de cozinheira. A tia explicou tudo direitinho. Muito simples, almoço e jantar, de vez em
quando um bolo, ou um cafezinho
para visita, um jantar para os filhos...
Coisa comum. A moça ouviu qual
era o salário, pensou, meditou e saiu
com essa: "Mas, dona, isso tudo é
com penso ou sem penso? Se for
sem penso, eu cobro mais barato!".
E, comenta o leitor, não é maravilhoso? Ela, na sua humildade,
querer até baixar o salário para se livrar do penso?
Outra leitora gostou da descrição
da Quinta-Feira Santa e mandou
um e-mail lindo. "Eu não iria fazer
almoço de Páscoa. Preguiça daquele
monte de chocolate, de coelho vestidinho de tudo quanto é jeito, pratinhos imitando alface, talheres com
cabo de cenoura... E, sobretudo, uma
preguiça imensa dos nossos novos
sete pecados capitais decretados semana passada. Aí, hoje leio sua coluna sobre a Última Ceia e senti a mesma vontade daquele menino, de receber o Cristo aqui na minha mesa.
O arrepio confirmou o desejo."
"Corri ao supermercado, comprei
um pernil de carneiro que vou temperar com sal e pimenta-do-reino,
cozinhar devagarinho numa panela
azul que eu trouxe de longe. Depois
de bem cozido, tiro da panela e queimo duas colheres de açúcar naquela
borrinha, refogo cebolas pequenas,
uma cabeça de alho com a casca, cenourinhas, cogumelos pequenos e
redondos, pico duas pimentas dedo-de-moça e, depois de tudo bem refogado, volto com o pernil que não é
grande. Coloco um galhinho de alecrim do meu herbário, meio copo de
vinho e meio de água. Espero apurar, pico salsa, cebolinha e sirvo com
arroz integral quente refogado no
gersal e no azeite e salada de rúcula
também da pequenininha. Tudo vai
ser na minha mesa de madeira lá fora, que eu vou limpar com gosto, fazer um arranjo com flores do meu
jardim e brindar o real motivo da
festa: receber o Milagreiro em nós e
renovar nossos votos de sermos pessoas melhores."
Não é sopa, esses assuntos de comida mexem com o íntimo, com o
amor, com a falta de amor, principalmente. Vamos tentar destrinchar esse abacaxi aos poucos. Como
pode a mulher que detesta esse assunto doméstico levar a vida adiante
sem maiores complicações?
ninahorta@uol.com.br
Texto Anterior: Cachaça ou uísque Próximo Texto: Crítica: Daniel Craig vive um 007 arrivista em "Cassino" Índice
|