São Paulo, sexta-feira, 27 de março de 2009

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CARLOS HEITOR CONY

Assaltantes e assaltados


Depois de um lanche e do charuto aceso, liguei a televisão para ver como ia o mundo


UM DOMINGO DE chuva e fiquei preso em casa, lendo, ou melhor, relendo Flaubert. Depois de "A Educação Sentimental", passei para "Madame Bovary", seguramente, os dois primeiros livros importantes que li, na altura dos 15 anos, na fazenda de Itaipava onde passava as férias nos tempos de seminário.
Reli-os depois, duas ou três vezes e agora, nesse dia de chuva, enfrentei mais uma vez o drama de Ema, com o mesmo encantamento da primeira leitura. Detenho-me na cena da feira, que hoje é considerada como o marco não apenas da literatura moderna mas do próprio cinema.
Nessa passagem do romance, as ações são paralelas e quase simultâneas. A cantada definitiva de Rodolfo em cima da mulher que cobiçava é feita ao mesmo tempo em que um funcionário do Estado lê um discurso sobre a agricultura, enquanto dezenas de figurantes cometem cada qual sua própria ação. O recurso de ações paralelas foi usado em outros romances e é um dos mais frequentes no cinema, desde o seu início até hoje.
Reconheço: é dose de emoção e me detive nessa cena. Deixei-a para o próximo domingo, quando irei relê-la mais uma vez, retomando o resto do romance. Terei assim uma semana para curti-la dentro de mim mesmo.
A noite de domingo não acabara e, depois de um lanche e do charuto aceso, liguei a televisão para ver como ia o mundo. Raramente vejo TV nos fins de semana, mas não custava nada. Talvez estivesse perdendo alguma coisa com as tramas paralelas que a vida costuma criar com insistente monotonia.
Vi a reprise de um programa em que Pavarotti comemorava seus 30 anos de carreira lírica. Vi e não gostei. Não sou de apreciar esse tipo de espetáculo, trechos de ópera em pastilhas. Jamais perderia meu tempo vendo Pelé batendo pênaltis durante 30 minutos. Outra coisa é ver Pelé suar a camisa no meio de 22 jogadores, com um juiz ainda por cima.
Assim é na ópera. Os trechos mais conhecidos funcionam no contexto musical e cênico. Isolados, parecem um pênalti macetado. Além do mais, no caso desse festival Pavarotti, havia algumas árias em dueto e a aparição de cantoras com complicada toalete agredia o visual e prejudicava o próprio canto.
Aceita-se o "nonsense", toleram-se todos os absurdos de "O Trovador", mas com o figurino medieval de praxe. A cena de Tosca com Scarpia no Palazzo Farnese funciona com os trajes da época e o cenário adequado, mas torna-se ridícula quando cantada fora do contexto original. Puccini viu a peça teatral de Sardou em Paris, com Sarah Bernhardt no papel principal. E foi pensando nela que criou uma das óperas mais populares do repertório lírico.
Mudei de canal. Foi pior: havia uma luta de boxe entre dois campeões norte-americanos. Se os trechos líricos eram complicados, a luta era complicadíssima para quem não é douto no assunto. Vi dois negros se esmurrando, um deles encurralava o outro nas cordas, batia-lhe sem dó, e assim se passaram 12 ou 15 rounds, que os locutores traduziam (aliás, com razão) como "assaltos".
Ao final, nenhum dos dois foi ao chão, mas um dos negros estava uma coisa, parecia um bêbado desviando-se de estrelas imaginárias. O juiz levantou o braço negro cambaleante, que fora esmurrado durante todos os assaltos. Entre perdas e danos, perdera menos que o adversário. Ao vencedor, as batatas.
A assistência delirou, dando razão ao juiz. Bem, de boxe não entendo nada. Tampouco de ópera ou de qualquer outro assunto. Daí talvez que nada entendi quando, num debate entre cientistas políticos, um deles, com cara alarmada, denunciou que o senador Fernando Collor havia "assaltado" a presidência de uma comissão do Senado Federal. Achei curiosa a coincidência dos assaltos, tanto nas regras do boxe como no regimento da câmara alta. O lutador assaltou o adversário e o senador assaltou um cargo de forma prevista pelos regulamentos. Não entendi o entusiasmo pela vitória do primeiro nem o horror causado pelo segundo.
O melhor foi mesmo voltar a Flaubert. Reli a cena da feira e, por Júpiter! -esqueci o mau gosto da miséria humana. De repente, o domingo acabou- e esta crônica também.


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