São Paulo, sábado, 27 de março de 2010

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Crítica/"Sinto Muito"

Textos mergulham na condição humana

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

Nuno Lobo Antunes faz parte de duas linhagens tão interessantes quanto ilustres. A primeira é a dos médicos escritores portugueses, que vem de longe; inclui nomes como os de Garcia de Orta (século 16) e se continua com Fialho de Almeida, Marques dos Santos, Fernando Namora e Miguel Torga. A segunda linhagem é a da sua própria família. Médicos não faltam entre os Lobo Antunes, que aliás têm antepassados brasileiros.
O tio-avô foi o pai da neurocirurgia em Portugal, o pai era neurologista; o irmão, João, é neurocirurgião. Coroando a lista, temos António Lobo Antunes, psiquiatra, grande nome da literatura moderna, e autor de uma original obra marcada por sua experiência da guerra colonial em Angola (foi médico do exército português), e que inclui, entre outros "Os Cus de Judas" (1979) e "Que Cavalos São Aqueles que Fazem Sombra no Mar?" (2009).
Nascido em 1954, Nuno é o mais jovem. Formado em medicina, trabalhou em instituições médicas de Nova York. É especialista em neuro-oncologia pediátrica, casos de câncer do sistema nervoso em crianças. Uma área sombria, mas muito desafiadora e reveladora.
A neurologia, mostra-o a obra de um Oliver Sacks, permite um fundo mergulho na condição humana e é exatamente isto que vamos encontrar nos textos de "Sinto Muito".
O prefácio e o posfácio são de médicos escritores: o português António Damásio, também ele neurologista e escritor (autor do premiado "O Erro de Descartes"), e o nosso Drauzio Varella, que classifica a obra como "uma declaração de amor ao próximo".
De fato, este é o aspecto que mais chama a atenção nas mais de 40 crônicas de Nuno Lobo Antunes. Diz-nos o autor: "O campo da medicina que escolhi obriga-me muitas vezes a ser o mensageiro da má notícia", para logo adiante observar: "Não há maneiras boas de dizer coisas más, mas há maneiras melhores que outras".
E esta opção é garantida, no caso de Nuno Lobo Antunes, por sua extraordinária empatia em relação aos pacientes e às pessoas em geral. Chama a atenção a quantidade de gente de quem lembra os nomes; uma lembrança que evidencia poderosos laços afetivos. Numa época em que a medicina é uma atividade cada vez mais tecnológica e impessoal, Nuno nos recorda que a relação médico-paciente é, antes de mais nada, uma relação entre seres humanos; demonstram-no seus relatos, sempre em linguagem elegante, poética, barroca, até.
Os personagens são os mais diversos. A crônica "O Cigano" fala da dramática reação do pai cigano que vê a filha morrer.
Em "Nove Meses Exatos" temos um caso parecido, mas a família é chinesa. Em "Deus Está ao Telefone" o personagem é um judeu ortodoxo com câncer. As crônicas são sempre permeadas pelas reflexões sobre o que é a medicina, e sobre o médico como um ser humano, suas angústias, sua ansiedade: "Cada página que escrevo vai numa garrafa de náufrago lançado ao mar", diz-nos o autor no epílogo.
"Sinto Muito" é uma leitura imprescindível, e inesquecível.


SINTO MUITO

Autor: Nuno Lobo Antunes
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 39,90 (232 págs.)
Avaliação: bom




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