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Crítica/"Sinto Muito"
Textos mergulham na condição humana
MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA
Nuno Lobo Antunes faz
parte de duas linhagens tão interessantes
quanto ilustres. A primeira é a
dos médicos escritores portugueses, que vem de longe; inclui
nomes como os de Garcia de
Orta (século 16) e se continua
com Fialho de Almeida, Marques dos Santos, Fernando Namora e Miguel Torga. A segunda linhagem é a da sua própria
família. Médicos não faltam entre os Lobo Antunes, que aliás
têm antepassados brasileiros.
O tio-avô foi o pai da neurocirurgia em Portugal, o pai era
neurologista; o irmão, João, é
neurocirurgião. Coroando a lista, temos António Lobo Antunes, psiquiatra, grande nome
da literatura moderna, e autor
de uma original obra marcada
por sua experiência da guerra
colonial em Angola (foi médico
do exército português), e que
inclui, entre outros "Os Cus de
Judas" (1979) e "Que Cavalos
São Aqueles que Fazem Sombra no Mar?" (2009).
Nascido em 1954, Nuno é o
mais jovem. Formado em medicina, trabalhou em instituições médicas de Nova York. É
especialista em neuro-oncologia pediátrica, casos de câncer
do sistema nervoso em crianças. Uma área sombria, mas
muito desafiadora e reveladora.
A neurologia, mostra-o a obra
de um Oliver Sacks, permite
um fundo mergulho na condição humana e é exatamente isto que vamos encontrar nos
textos de "Sinto Muito".
O prefácio e o posfácio são de
médicos escritores: o português António Damásio, também ele neurologista e escritor
(autor do premiado "O Erro de
Descartes"), e o nosso Drauzio
Varella, que classifica a obra como "uma declaração de amor
ao próximo".
De fato, este é o aspecto que
mais chama a atenção nas mais
de 40 crônicas de Nuno Lobo
Antunes. Diz-nos o autor: "O
campo da medicina que escolhi
obriga-me muitas vezes a ser o
mensageiro da má notícia", para logo adiante observar: "Não
há maneiras boas de dizer coisas más, mas há maneiras melhores que outras".
E esta opção é garantida, no
caso de Nuno Lobo Antunes,
por sua extraordinária empatia
em relação aos pacientes e às
pessoas em geral. Chama a
atenção a quantidade de gente
de quem lembra os nomes; uma
lembrança que evidencia poderosos laços afetivos. Numa época em que a medicina é uma atividade cada vez mais tecnológica e impessoal, Nuno nos recorda que a relação médico-paciente é, antes de mais nada,
uma relação entre seres humanos; demonstram-no seus relatos, sempre em linguagem elegante, poética, barroca, até.
Os personagens são os mais
diversos. A crônica "O Cigano"
fala da dramática reação do pai
cigano que vê a filha morrer.
Em "Nove Meses Exatos" temos um caso parecido, mas a
família é chinesa. Em "Deus Está ao Telefone" o personagem é
um judeu ortodoxo com câncer. As crônicas são sempre
permeadas pelas reflexões sobre o que é a medicina, e sobre o
médico como um ser humano,
suas angústias, sua ansiedade:
"Cada página que escrevo vai
numa garrafa de náufrago lançado ao mar", diz-nos o autor
no epílogo.
"Sinto Muito" é uma leitura
imprescindível, e inesquecível.
SINTO MUITO
Autor: Nuno Lobo Antunes
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 39,90 (232 págs.)
Avaliação: bom
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