São Paulo, sábado, 27 de março de 2010

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LIVROS

Memórias na pele

Livro de estreia do moldávio Nicolai Lilin reconstrói, em narrativa fabular, comunidade criminosa numa terra de ninguém

FABIO VICTOR
DA REPORTAGEM LOCAL

Do lugar onde nasceu Nicolai Lilin, até o nome é complexo e fugidio: Transnístria.
Nem aparece nas enciclopédias como um país. É uma terra de ninguém encravada no leste europeu, que declarou independência em 1990 e vive num limbo legal -a Moldávia diz que é território seu, mas há outro governo que se declara autônomo, com apoio da Rússia.
A memória infantil de Lilin numa comunidade criminosa neste fim de mundo está descrita em "Educação Siberiana", que a Alfaguara lança no Brasil.
O autor, um tatuador de 30 anos que lutou do lado russo na Tchetchênia, hoje vive em Turim, na Itália, país onde o livro teve boa acolhida e foi elogiado por Roberto Saviano, do assemelhado "Gomorra".
Ambos retratam sem filtro o submundo de máfias, a napolitana, no caso de Saviano, e a dos urcas siberianos, no de Lilin.
Mas as semelhanças não vão muito além. "Gomorra" é um livro-reportagem. A obra de Lilin, que ele define como um romance baseado em sua história real, é fabular. Glorifica tanto o crime, embaralhando violência com dignidade, que chega a divertir, com seus "criminosos bons e honestos".
O leitor segue a perspectiva de uma criança encantada com esses códigos de honra e de ética da sua comunidade bandida.
Os urcas, segundo Lilin criminosos deportados da Sibéria para a Moldávia por Stálin nos anos 1930, têm um tratado particular sobre armas: as "honestas" são para caça e devem ser guardadas num altar; as "de pecado" têm fins exclusivamente criminais, e ficam escondidas. Todas as armas têm apelidos, as pessoas também -tudo no universo de Lilin tem apelido.

Couve-flor
Os urcas de "Educação Siberiana" não podem dirigir a palavra a policiais. Se topam com um, o ignoram, e à mulher do criminoso cabe o papel de interlocução. Desprezam o dinheiro e não pronunciam o termo, substituído por "lixo" ou "couve-flor". É sagrado o respeito a velhos e deficientes. Os urcas possuem chapéus e canivetes típicos, seu ritual de chá é único, e por aí vai.
"Tentei documentar a existência dos urcas, mas não achei informação alguma, então decidi usar minhas lembranças desse povo, tentando recuperar o que foi essa comunidade um dia", disse Lilin à Folha, em entrevista por e-mail.
As tatuagens, na cultura criminal siberiana, não podem ser feitas à máquina -só à mão, com agulhas. Lilin é todo tatuado e faz tatuagens, mas nega que sobreviva da atividade, como diz a mídia italiana -algo que seus editores não têm interesse em refutar, ao contrário.
E fica (ou se mostra) abespinhado se é indagado sobre as suas. "Onde cresci, perguntar sobre tatuagens pessoais era uma ofensa. A tatuagem existe para evitar palavras."
Ao tecer detalhes sobre a vida num lugar esquecido do mundo, Lilin ganhou, junto com aplausos, desconfiança. O jornal "La Stampa" questionou a veracidade de informações históricas e culturais apresentadas no livro. Lilin diz que a denúncia "não prova nada; é como querer investigar a máfia siciliana batendo de porta em porta atrás do endereço do chefão e, sem consegui-lo, concluir que a máfia não existe".
Para além de romantizar a ética criminal, o livro traz também relatos violentos -brigas das gangues que o narrador integrou, estupros no reformatórios onde esteve preso, assassinatos, vinganças. Lilin fala mal de Deus e o mundo, georgianos, ucranianos, americanos, comunistas, outras máfias russas.
Conta que recebeu ameaças de morte e tem proteção policial. Só anda armado, o que acha muito natural: "Venho de uma comunidade paramilitar e com tradição de caça. As armas tiveram papel importante na minha educação, eu as respeito, sei usá-las e tenho muitas."
Lilin deixou a Transnístria aos 18 anos para lutar na Tchetchênia. Há menos de cinco anos foi morar na Itália, onde já vivia sua mãe. Considera o país sua nova pátria e escreveu o livro em italiano. "Educação Siberiana" teve 60 mil exemplares vendidos por lá, e seus direitos negociados para 18 países e para o cinema.
Lilin lançará em breve seu segundo livro, sobre a experiência na Tchetchênia, descrita de raspão no primeiro. Será novamente, diz, uma ficção baseada em fatos reais.


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