São Paulo, domingo, 27 de março de 2011

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Musical reflete acidez de "South Park"

Dupla de criadores do desenho estreia na Broadway espetáculo sobre jovens mórmons que atuam em Uganda

Autor de "Avenida Q" completa trio que aborda temas tabus como Aids, estupro e mutilação feminina

LUCAS NEVES
ENVIADO ESPECIAL A NOVA YORK

A metralhadora giratória do desenho "South Park" acaba de ganhar atiradores de carne e osso. Não se engane: Kyle, Kenny e cia. continuam desfiando impropérios em suas encarnações 2D, achatadas.
O que saltou da TV é o espírito anárquico, sem papas na língua, dos diálogos e situações criados por Matt Stone e Trey Parker.
À frente de "The Book of Mormon" (o livro de Mórmon), que estreou nesta semana na Broadway com repercussão na mídia americana inferior apenas à do desafortunado "Spider-Man: Turn Off the Dark", renovam o arsenal de torpedos contra o politicamente correto.
Para contar a história de dois jovens missionários mórmons despachados para os confins de Uganda, enfileiram piadas sobre o depauperado país africano.
A livre circulação de milícias pelas ruas, o sono profundo do poder público e o atraso tecnológico daquelas bandas -uma das personagens manda mensagem para os amigos via máquina de escrever- são objeto de tiradas ácidas. Mas Stone e Parker vão bem mais longe.
Assuntos como Aids e mutilação sexual feminina circulam pelas conversas do povoado ugandense em tom de aterradora trivialidade.
Alguns portadores do vírus, inclusive, estão convictos de que podem se curar fazendo sexo com bebês. A ignorância conduz ao abjeto, ao grotesco, que desemboca no riso estupefato.
Os autores poderiam passar por ianques cruéis a tripudiar sobre a desgraça alheia. Esquivam-se da armadilha ao guardar parte considerável de sua pólvora para o "fogo amigo".
A trupe americana que tenta catequizar os africanos acha que o tal livro -escrito por Joseph Smith Jr. em 1830, a partir de placas de ouro apontadas por um anjo- guarda respostas para todas as aflições daquela terra.

SOBROU PARA DEUS
Essa ingenuidade é exposta (e devidamente ridicularizada) já de saída, quando o grupo que acolhe a dupla de Salt Lake City exibe um hino escapista cujo refrão ecoa um "vá se foder, Deus!".
É a expressão de quem sente que "lá tem Jesus que está de costas", parafraseando a canção de Chico Buarque sobre o subúrbio carioca.
Diante dos fatos, Price, o mais aplicado da dupla recém-chegada, observa, em tom desolado, que a animação "O Rei Leão" incorporou liberdades poéticas demais ao retrato do continente africano. Pede para sair.
O gordinho Cunningham, misto de Jack Black e personagem saído de comédia teen à "Superbad", divisa outra saída: interpretar de modo heterodoxo as palavras do livro sagrado para que ressoem com o rebanho local.
Pinça dali referências obtusas (e imaginárias) à Aids, às práticas sexuais com bebês e à amputação feminina. Dá à retórica mórmon algum sentido naquela latitude.
O projeto de "The Book of Mormon" existe desde 2003, quando Stone e Parker conheceram Robert Lopez, o criador do (também desbocado) musical "Avenida Q" -que já teve montagem brasileira, assinada por Charles Möeller e Claudio Botelho.
Acertada a parceria, o trio inicialmente cogitou produzir uma animação ou um filme com atores de carne e osso. Acabou se decidindo por uma montagem depois de um workshop.
No espírito boquirroto de "South Park", Lopez contou ao "New York Times" o que o atraiu no imaginário mórmon: "É uma bobajada enorme [a história da escritura do livro de Mórmon]. Mas as pessoas creem tanto nisso, e suas vidas são efetivamente melhoradas por essa fé".
Ceticismo com uma ponta de sentimento: é de um musical que se trata, afinal, e cabe saber declarar armistício.


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