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CONTARDO CALLIGARIS
"Estrela Solitária": fuga para o passado
Nos anos 70, na França, descobri um estranho fenômeno: a cada ano, cidadãos adultos,
em número significativo, mas incerto (na casa dos milhares), sumiam, simplesmente.
Alguns, ao sumirem, cometiam
um crime: paravam de pagar dívidas, abandonavam crianças
etc. Esses eram contabilizados e
procurados ativamente. No entanto, a maioria deixava apenas
seus amigos, parentes e conhecidos um pouco (ou muito) preocupados. A polícia, uma vez avisada, registrava a ocorrência, mas
não sabia bem o que fazer. Na ausência de um delito, investigar o
quê? Mesmo se uma investigação
tivesse êxito, por que a polícia comunicaria a quem que fosse o novo paradeiro do "desaparecido"?
A lei nos dá o direito de sumir,
sem dever explicações para ninguém. E, de fato, pelo mundo afora (não só na França, é óbvio), há
pessoas que, um belo dia, vão embora.
A idéia já me passou pela cabeça. Aliás, ela me tenta a cada vez
(e foram muitas vezes, nos últimos anos) em que empacoto ou
desempacoto a incrível quantidade de trastes que levo comigo nas
mudanças, objetos de "valor afetivo", papéis misteriosos guardados porque "nunca se sabe", fotografias, cartas: o amontoado de
contratos puramente simbólicos
que me ligam (de uma maneira
mais ou menos tolerável) ao meu
passado e aos outros.
Essa tentação de sumir pelo vasto mundo me parece expressar a
vontade de nascer de novo e, se
possível, desta vez, debaixo de um
repolho -sem dever nada a ninguém.
Pois é, se essa idéia passou alguma vez por sua cabeça, não perca,
sob nenhum pretexto, o novo filme de Wim Wenders, "Estrela Solitária", que estreou na sexta-feira passada. E, se a dita idéia nunca lhe ocorreu, também não perca: no mínimo, o filme (que é
uma obra-prima) será de grande
ajuda para entender quem é o seu
vizinho (às vezes, mais vizinho do
que você imagina) que pensa em
fugir da vida que ele tem.
Como disse, eu entendia a tentação da fuga como uma vontade
de zerar as contas e de recomeçar.
Em suma, achava que eu quisesse
fugir para o futuro.
Mas o filme de Wenders propõe
um caso diferente ou, então, uma
interpretação diferente, que poderia valer para todos os fugitivos, ou para sua maioria (inclusive para mim). Por mais que a fuga manifeste uma vontade de recomeçar, sua direção não é necessariamente o futuro; pode ser o
passado. Foge-se não só do peso
das obrigações acumuladas ao
longo da vida, mas também (e
talvez sobretudo) de sua insuficiência. Foge-se, por exemplo, na
procura daqueles fios que deixamos cair ao longo da estrada e
que poderiam ter ligado nossa vida aos outros de uma maneira
que valesse a pena.
O protagonista de Wim Wenders (Sam Shepard, que co-assina
o roteiro) não corre atrás de uma
liberdade perdida. Ao contrário,
ele descobre um dia que sua vida
foi bem animada e, por isso mesmo, passou sem que ele se desse
conta, sem deixar rastos, sem
construir laços. E foge para o passado.
Alguém lhe pergunta, num momento crucial do filme: "Do you
want to be related?". A frase não
pode ser traduzida de maneira
sintética, ela não significa apenas
"Você quer ser parente de alguém?" (a legenda, no caso, está
francamente errada); a pergunta
concerne à vontade ou não de estar na malha dos afetos, tristes ou
alegres, que organizam uma existência e distribuem as obrigações
que esses afetos acarretam. Ou seja, o sentido é: "Quer ou não viver
com os outros?".
Logo depois desse momento, o
protagonista passa uma noite
sentado num sofá que, jogado anteriormente pela janela, está no
meio de uma rua. Ele escuta as
vozes humildes do cotidiano de
quem vive com os outros, as conversas, os gritos, os suspiros ofegantes do amor.
É difícil escolher: podemos viver
como heróis de filme de bangue-bangue, entre um adeus cinematográfico ("Não chore, querida,
voltarei antes de a neve cair") e
uma volta tão cinematográfica
quanto o adeus (apareceremos no
horizonte, montados num cavalo
branco ou numa velha Packard,
tanto faz). Ou, então, podemos viver sem cenas triunfais, no murmúrio do dia-a-dia, que nem
sempre é engraçado, mas no qual
os que estão ao redor de nós podem justificar nossa existência,
dar-lhe um sentido que não seja
apenas espetacular.
Ou seja, podemos viver para
sermos as "estrelas solitárias" do
filme de nossa vida ou deixar que
os outros nos enredem num emaranhado que será menos glorioso.
Apartes:
1 - Apesar de meu último parágrafo, continuo pensando que o
título original, "Don't Come
Knocking" (literalmente: não venha bater na minha porta), mereceria uma tradução melhor.
2 - Diante da morna reação de
alguns críticos, fico perplexo. Não
sei se devo me surpreender com a
incapacidade de enxergar a extraordinária qualidade cinematográfica do filme (a luz fria que
bate nas ruas de Butte, Montana,
parece a extensão dos melhores
quadros de Edward Hopper,
quando ele pintava o enigma da
solidão americana) ou se devo me
surpreender com a incapacidade
de reconhecer no roteiro uma meditação terna, divertida e profunda sobre um dilema fundamental
da subjetividade contemporânea.
@ - ccalligari@uol.com.br
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