São Paulo, domingo, 27 de abril de 2008

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BIA ABRAMO

A propaganda e o mundo irreal


As propagandas de automóveis estão se tornando aterrorizantes nos dias de hoje

NAS PRIMEIRAS cenas, aparece uma avenida com várias pistas, que termina numa alça de viaduto. Em cada uma das quatro pistas, nos dois sentidos e na alça, há carros. Muitos. O trânsito não está parado, mas as vias estão tomadas.
É de noite; o céu está escuro e vemos faróis acesos, os dianteiros com luz branca, os traseiros com luz vermelha. Os automóveis andam; devagar, porque o fluxo é intenso. A música é suave. Uma mão desliga um despertador, com mostrador digital: é bem cedo, quase de madrugada, e o dono da mão está despertando.
Corta para outra cena de trânsito, mas dessa vez um carro some, deixando uma fumaça muito tênue no ar. Seguem-se cenas semelhantes: pessoas que despertam, carros que desaparecem. As imagens externas vão se tornando mais claras: é início de dia. O sol vai progressivamente clareando, mais gente vai despertando, mais automóveis sumindo.
Não há locução e, por alguns segundos ou décimos deles, aqueles carros todos saindo de cena, instala-se um fio de esperança: será que essas pessoas que acordam estão desistindo de ir de carro para o trabalho, por isso eles se esvaem no ar? Será que estamos diante de uma campanha para desestimular o transporte individual?
Até que uma voz em off nomeia a decepção: "Se você sonhava com um carro bonito, completo, que não fosse só um carro, ele chegou". No próximo toque do controle remoto, você aterrissa no mundo real: o telejornal informa sobre mais um recorde de trânsito em São Paulo; os quilômetros de congestionamento invariavelmente na casa das centenas. O recorde inadmissível de ontem é o trânsito suportável de hoje e dele teremos saudades amanhã.
As propagandas de automóveis, qualquer uma (e são muitas), estão se tornando francamente aterrorizantes nos dias de hoje, pelo menos para aqueles que vivem em SP. Na cidade cuja frota já de 6 milhões acabou de ganhar 48 mil novos veículos só em março, cada automóvel a mais significa mais trânsito, mais transtorno, mais caos; portanto, cada apelo para que se compre mais um daquela ou desta marca soa funesto como uma trombeta do apocalipse.
É claro que a publicidade funciona. Mesmo com a piora galopante do trânsito, as pessoas estão comprando mais em vez de menos carros: o número de novos veículos que integraram a frota de São Paulo em março de 2008 é 64% maior do que a média mensal de todo o ano de 2007.
Tanta eficiência é, justamente, o aspecto mais diabólico da propaganda. Se vender geladeira a esquimó já parece meio perverso, fazê-los enxugar gelo soa quase cruel.

biabramo.tv@uol.com.br


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