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SALÃO DO LIVRO
O escritor inglês está no Brasil para o lançamento da obra
Nem tudo é verdade no "Quarentena" de Jim Crace
JULIANA MONACHESI
da Redação
Ele se define como um escritor
tradicional, mas não convencional. Sua ficção desdenha fatos históricos ou qualquer outro detalhe
da realidade que não contribua para tornar suas histórias mais saborosas. Em entrevista à Folha, o inglês Jim Crace conta sua versão,
sempre mais original, dos fatos
que cercam o livro "Quarentena",
indicado ao Booker Prize, mais importante prêmio literário da Inglaterra, e com roteiro para cinema
sendo feito por Patrick McGrath.
Crace esteve no Salão Internacional do Livro de São Paulo para lançar "Quarentena" (Geração Editorial). Hoje visita a Bienal do Livro
do Rio de Janeiro.
Folha - Por que um ateu estuda
as Sagradas Escrituras e pesquisa
com tanto afinco sobre Jesus?
Jim Crace - Eu não estudei as Escrituras. Nunca li a "Bíblia". Isso é
um trabalho de ficção e tudo nele é
inventado. Mas a ficção é exatamente assim. Não fiz nenhuma
pesquisa para o livro, mas passei
dez dias no deserto judeu, na Palestina. A idéia era descobrir como
contar mentiras sobre o deserto.
Uma noite, eu e meu guia beduíno dormimos no deserto. Pela manhã, ele perguntou, "Como você
dormiu?", e eu respondi, "I slept like a log" ("log" significa tronco de
árvore; a expressão é equivalente a
"dormir como uma pedra"). Ele
me olhou surpreso, pois no deserto, onde não há madeira, um tronco de árvore não dura um segundo,
é logo usado para fazer fogo.
Perguntei como ele tinha dormido: "Como um burro morto; nem
um chute me despertaria". E eu
pensei, "Então essa é a diferença:
para contar boas mentiras sobre o
deserto, você não precisa fazer pesquisa, mas precisa lembrar de
transformar seus troncos de madeira em burros". Assim, a sensibilidade britânica foi banida e a sensibilidade do deserto, absorvida.
Folha - Absorvida em dez dias?
Crace - A imaginação humana é
vasta, e os seres humanos têm contado histórias por milhares de
anos; somos bons nisso. E a verdade é que nós não gostamos de
quem não é mentiroso. O que você
quer quando encontra pessoas socialmente é alguém que vai achar a
verdade em uma história gozada.
Folha - Você não chegou nem sequer a fazer uma pesquisa sobre a
época em que se passa a história?
Crace - Não, mas é claro que todo
mundo que vive em um país cristão absorveu a história de Cristo. A
pesquisa é inimiga da boa ficção.
Romances interessam-se pela verdade universal e pela verdade moral, não pela verdade do dia-a-dia.
Folha - Mas, se era para contar
uma história sobre uma verdade
universal, por que escolheu Jesus e
não outra pessoa qualquer?
Crace - Eu não sei. Não escolhi Jesus, isso é que é estranho, Jesus me
escolheu. Comecei a escrever um
livro em que Jesus ia ser apenas um
personagem secundário. Ele ia ter
só um parágrafo. Os personagens
principais seriam as quatro pessoas nas cavernas. Jesus estaria lá
apenas em um parágrafo para que
as pessoas entendessem o contexto
histórico da quarentena.
Então, ao começar a escrever o
capítulo seis, de repente me ocorreu: "Um parágrafo não é suficiente, lhe daremos um capítulo". Ao
final do capítulo, o filho de Deus tinha curado o demônio. Então, percebi que estava interessado em Jesus e que eu seria louco de bani-lo
da minha história.
A ficção tem vida própria. O livro
e eu tivemos uma luta; eu estava
tentando matar Jesus, e o livro estava tentando salvar sua vida. Eu
venci, matando Jesus no livro, mas
o livro vinga-se de mim e vence ao
ressuscitar Jesus.
A verdade é que a ficção ama ambiguidade. Portanto, no final desse
livro, se você é um ateu, todas as
evidências de que Cristo está morto estão lá; mas, se você é cristão,
no final, todas as evidências estão
lá de que Cristo sobreviveu.
Folha - Como foi a "luta" com
"Continente" e com os outros livros que você escreveu?
Crace - Alguns escritores gostam
de ter tudo planejado antes de escrever. Eu gosto de fazer uma viagem misteriosa, pelo seguinte motivo: o livro começa a funcionar
quando abandona o escritor, pois
começa a tornar-se diferente dele.
Sou um socialista convicto, mas
meu primeiro livro, "Continente",
era quase reacionário. Meu novo
livro, "Being Dead", é muito sentimental; eu não sou.
Folha - Você trabalhou no "London Sunday Times" e no "The Sunday Telegraph". Costumava mentir
nos textos jornalísticos também?
Crace - Não, é esquisito. Eu era
muito responsável e honesto, mas
ficava desesperado para contar algumas mentiras e ser ambíguo.
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