São Paulo, Terça-feira, 27 de Abril de 1999
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SALÃO DO LIVRO
O escritor inglês está no Brasil para o lançamento da obra
Nem tudo é verdade no "Quarentena" de Jim Crace

JULIANA MONACHESI
da Redação

Ele se define como um escritor tradicional, mas não convencional. Sua ficção desdenha fatos históricos ou qualquer outro detalhe da realidade que não contribua para tornar suas histórias mais saborosas. Em entrevista à Folha, o inglês Jim Crace conta sua versão, sempre mais original, dos fatos que cercam o livro "Quarentena", indicado ao Booker Prize, mais importante prêmio literário da Inglaterra, e com roteiro para cinema sendo feito por Patrick McGrath.
Crace esteve no Salão Internacional do Livro de São Paulo para lançar "Quarentena" (Geração Editorial). Hoje visita a Bienal do Livro do Rio de Janeiro.

Folha - Por que um ateu estuda as Sagradas Escrituras e pesquisa com tanto afinco sobre Jesus?
Jim Crace -
Eu não estudei as Escrituras. Nunca li a "Bíblia". Isso é um trabalho de ficção e tudo nele é inventado. Mas a ficção é exatamente assim. Não fiz nenhuma pesquisa para o livro, mas passei dez dias no deserto judeu, na Palestina. A idéia era descobrir como contar mentiras sobre o deserto.
Uma noite, eu e meu guia beduíno dormimos no deserto. Pela manhã, ele perguntou, "Como você dormiu?", e eu respondi, "I slept like a log" ("log" significa tronco de árvore; a expressão é equivalente a "dormir como uma pedra"). Ele me olhou surpreso, pois no deserto, onde não há madeira, um tronco de árvore não dura um segundo, é logo usado para fazer fogo.
Perguntei como ele tinha dormido: "Como um burro morto; nem um chute me despertaria". E eu pensei, "Então essa é a diferença: para contar boas mentiras sobre o deserto, você não precisa fazer pesquisa, mas precisa lembrar de transformar seus troncos de madeira em burros". Assim, a sensibilidade britânica foi banida e a sensibilidade do deserto, absorvida.
Folha - Absorvida em dez dias?
Crace -
A imaginação humana é vasta, e os seres humanos têm contado histórias por milhares de anos; somos bons nisso. E a verdade é que nós não gostamos de quem não é mentiroso. O que você quer quando encontra pessoas socialmente é alguém que vai achar a verdade em uma história gozada.
Folha - Você não chegou nem sequer a fazer uma pesquisa sobre a época em que se passa a história?
Crace -
Não, mas é claro que todo mundo que vive em um país cristão absorveu a história de Cristo. A pesquisa é inimiga da boa ficção. Romances interessam-se pela verdade universal e pela verdade moral, não pela verdade do dia-a-dia.
Folha - Mas, se era para contar uma história sobre uma verdade universal, por que escolheu Jesus e não outra pessoa qualquer?
Crace -
Eu não sei. Não escolhi Jesus, isso é que é estranho, Jesus me escolheu. Comecei a escrever um livro em que Jesus ia ser apenas um personagem secundário. Ele ia ter só um parágrafo. Os personagens principais seriam as quatro pessoas nas cavernas. Jesus estaria lá apenas em um parágrafo para que as pessoas entendessem o contexto histórico da quarentena.
Então, ao começar a escrever o capítulo seis, de repente me ocorreu: "Um parágrafo não é suficiente, lhe daremos um capítulo". Ao final do capítulo, o filho de Deus tinha curado o demônio. Então, percebi que estava interessado em Jesus e que eu seria louco de bani-lo da minha história.
A ficção tem vida própria. O livro e eu tivemos uma luta; eu estava tentando matar Jesus, e o livro estava tentando salvar sua vida. Eu venci, matando Jesus no livro, mas o livro vinga-se de mim e vence ao ressuscitar Jesus.
A verdade é que a ficção ama ambiguidade. Portanto, no final desse livro, se você é um ateu, todas as evidências de que Cristo está morto estão lá; mas, se você é cristão, no final, todas as evidências estão lá de que Cristo sobreviveu.
Folha - Como foi a "luta" com "Continente" e com os outros livros que você escreveu?
Crace -
Alguns escritores gostam de ter tudo planejado antes de escrever. Eu gosto de fazer uma viagem misteriosa, pelo seguinte motivo: o livro começa a funcionar quando abandona o escritor, pois começa a tornar-se diferente dele. Sou um socialista convicto, mas meu primeiro livro, "Continente", era quase reacionário. Meu novo livro, "Being Dead", é muito sentimental; eu não sou.
Folha - Você trabalhou no "London Sunday Times" e no "The Sunday Telegraph". Costumava mentir nos textos jornalísticos também?
Crace -
Não, é esquisito. Eu era muito responsável e honesto, mas ficava desesperado para contar algumas mentiras e ser ambíguo.


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