|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Show de Berlim revela arestas de Gil
Ministro cantou clássico sobre esbórnia política e música sobre cambalacho em meio a uma celebração conciliadora
Única canção nova mostrada na apresentação, vista por 1.200 pessoas, foi o samba "Balé em Berlim", composto para a Copa do Mundo
JOSÉ GERALDO COUTO
ENVIADO ESPECIAL A BERLIM
Sucesso absoluto de público,
o show de Gilberto Gil, anteontem à noite, na Casa das Culturas do Mundo, em Berlim, acabou por revelar sutilmente os
dilemas e as contradições em
que o músico e ministro da Cultura está envolvido.
O espetáculo, que botou para
dançar a quase totalidade dos
1.200 espectadores presentes,
abriu oficialmente a Copa da
Cultura, série de 200 eventos
culturais brasileiros programados para 20 cidades alemãs durante a Copa do Mundo.
Na superfície, o show de Gil
foi uma celebração do caráter
universal e fraterno da música:
de Bob Marley a Luiz Gonzaga,
passando por John Lennon e
Chico Buarque, o músico exaltou a força da poesia cantada (e
dançada) como elemento de
troca e integração cultural.
O público se encantou, por
exemplo, ao ouvir "Imagine"
com um arranjo acústico que
incluía bandolim, pandeiro e
acordeom de 120 baixos. Ou
"Asa Branca" com guitarra elétrica e percussão eletrônica.
Música do mundo, enfim, muito mais do que o redutor rótulo
de "world music".
Repertório
Mas a escolha do repertório
e, sobretudo, seu encadeamento revelaram muito da delicada
situação em que se agita esse
artista tornado homem político
num momento de crise.
Numa interpretação vigorosa e irônica do tango "Cambalache", de Enrique Santos Discépolo, um clássico sobre a esbórnia política e social latino-americana, Gil enfatizou com gestos a parte da letra que diz: "El
que no llora no mama, y el que
no afana es un gil". Tradução da
gíria portenha: "Quem não chora não mama, e quem não afana
é um otário". Levando em conta o governo de que o músico
faz parte como ministro, o sentido se potencializa.
Em seguida a essa declaração
entre cética e cínica, Gil mostrou sua outra face, a utópica e
conciliadora, com "Imagine",
cujo refrão diz: "Você pode dizer que sou um sonhador, mas
não sou o único. Espero que um
dia você se junte a nós, e o mundo será uma coisa só".
Pouco depois, voltando a demarcar posição em meio ao
cambalacho brasileiro, o compositor apresentou quase com
raiva sua "Nos Barracos da Cidade": "O governador promete,
mas o sistema diz não. Os lucros são muito grandes, mas
ninguém quer abrir mão (...). A
usura dessa gente já virou um
aleijão". O público delirava.
A única canção nova foi o
samba "Balé em Berlim", feito
para a Copa do Mundo, que celebra em seu refrão o caráter
multicultural do futebol: "Beckenbauer, Bauer, Barbosa, Bobô/ Puskas, Bellini, Eto'o".
A vocação diplomática do
músico, seu desejo de agradar a
todos, veio à tona sutilmente na
sua apoteótica interpretação de
"Aquele Abraço". O verso que
diz "Alô, torcida do Flamengo"
foi ampliado para "do Flamengo, do Vasco, do Fluminense e
do Botafogo".
Para a platéia de alemães e
brasileiros em êxtase, essas filigranas políticas pouco importavam. Afinal, era apenas um
show de música popular. Um
dos melhores dos últimos tempos, mostrando que, independentemente da política, Gilberto Gil ainda é um artista em pleno vigor criativo.
Texto Anterior: Bolsa de apostas Próximo Texto: Costello lança disco sobre Nova Orleans Índice
|