São Paulo, sábado, 27 de maio de 2006

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DRAUZIO VARELLA

Seu Nicola

Gabava-se de ser um homem do trabalho para a casa, exceto nas noites de quarta-feira

PARA SEU Nicola, a palavra empenhada valia mais do que contrato em cartório. Órfão aos 15 anos, havia emigrado para o Brasil com a incumbência de sustentar a mãe e seis irmãos menores na Calábria, como não se cansava de repetir para os filhos e os funcionários da gráfica montada por ele depois de 30 anos de trabalho.



Em São Paulo, conheceu dona Constância, aluna das freiras do Santa Inês, nos Campos Elíseos, filha de italianos do norte que não viram com bons olhos o namoro com aquele pobretão calabrês. Mas a moça enfrentou com tamanha obstinação a resistência paterna que, na véspera do casamento, o noivo prometeu emocionado:
-Juro que vou fazer você feliz para sempre.
Prometeu e nunca deixou de cumprir, como era de seu feitio. Em mais de 40 anos de vida em comum, dona Constância podia queixar-se do jeito às vezes ríspido do marido, da rigidez de princípios e da ausência de declarações amorosas, mas da falta de consideração, jamais. Dos tempos de agruras financeiras à casa confortável e às viagens à Europa, seu Nicola nunca levantava a voz para a esposa ou discordava dela diante dos filhos ou de quem fosse; todos os meses, impreterivelmente no dia 3, chegava em casa com uma lembrança para festejar o dia em que o matrimônio os unira.
Tiveram dois filhos que trabalhavam na gráfica e uma menina, dez anos mais nova do que os irmãos, educada à moda antiga, a única pessoa capaz de fazer o pai de gato e sapato, segundo diziam os irmãos.
Conheci seu Nicola aos 60 anos, corpulento, sempre de terno escuro, com o semblante austero como se estivesse para comunicar algo grave a qualquer momento. Na volta do trabalho, sentava à mesa com a família e rezava uma prece em napolitano, depois da qual todos falavam ao mesmo tempo até soar o primeiro acorde do noticiário da TV, senha infalível para que o silêncio reinasse absoluto. Gabava-se de ser um homem do trabalho para a casa, com exceção das noites de quarta-feira, quando se reunia com um grupo de conterrâneos no mesmo salão de bilhar dos tempos de solteiro.
No dia em que a filha completou 18 anos, pediu ao pai autorização para namorar um rapaz dez anos mais velho. Ele foi contra: achava a diferença de idade muito grande. A insistência respeitosa da esposa e a melancolia infindável da filha, entretanto, fizeram-no rever a decisão.
Encontrou-se com o pretendente no escritório. O rapaz explicou que tinha intenção de casar com uma moça sem experiência prévia, ser fiel a ela e constituir família numerosa. Afirmou ser trabalhador e não fumar nem beber; não era desses tipos que trancam a mulher em casa para ir atrás de outras.
À noite, a sós com dona Constância, seu Nicola comentaria a respeito do encontro:
-Parece um moço correto, mas se veste na moda e é mais perfumado do que mão de barbeiro.
A convivência se encarregou de amenizar as idiossincrasias do sogro. Chegou a apresentar o futuro genro para os companheiros das quartas-feiras.
Mas, a menos de um mês da cerimônia de casamento, a harmonia doméstica foi abalada numa noite em que seu Nicola saiu para o bilhar tradicional. No caminho, como acontecia ocasionalmente, decidiu visitar uma amiga numa casa de tolerância.
Estava com ela, quando ouviu gritos no quarto vizinho. A mulher gritava que os favores solicitados pelo cliente, ela só prestaria por amor, para alguém que merecesse, jamais para um bêbado naquele estado. Quando a altercação saiu para o corredor, seu Nicola, precavido, espiou por uma fresta na porta.
Tomou um choque: era o futuro genro de cueca, embriagado, contido por um leão-de-chácara para não agredir a mulher.
Quando chegou em casa, seu Nicola reuniu a esposa e os filhos. Disse à filha que desmanchasse imediatamente o casamento com aquele tipo à toa, e, diante de todos, descreveu a cena presenciada no bordel. No final, justificou sua presença naquele local:
-Sou um homem de bem, fiel à mãe de vocês, mas tive um momento de fraqueza. Ele não! É cafajeste sem vergonha.
Dias mais tarde, os amigos comentavam no bilhar:
-Homem de coragem! Colocou em risco 40 anos de casamento para proteger a filha de um mau passo.


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