São Paulo, quarta-feira, 27 de junho de 2001

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MARCELO COELHO

Sobre velhas utopias e algumas palavras de mau gosto

A foto , em preto-e-branco, saiu há alguns dias aqui na Ilustrada. Vemos uma menina de uns oito anos, de vestido branco. Ela está de costas, no canto inferior esquerdo, minúscula. Todo o resto da foto é ocupado por raízes e troncos de árvores gigantescas.
A desproporção entre a menina e as árvores tem algo de conto de fadas ou de pesadelo, não sei bem. A foto faz parte de uma exposição em cartaz no Memorial da América Latina, que traz 90 e tantos trabalhos do artista mexicano Juán Rulfo (1917-1986).
Rulfo é muito conhecido como escritor. Seu romance "Pedro Páramo" é tido como um dos melhores exemplos do realismo fantástico latino-americano. No Memorial, está sua obra como fotógrafo. Ele viajou por muitas regiões do México, retratando camponeses, paisagens e ruínas.
Calma, que não vamos entrar no tema, tão ultrapassado, da "latinidad" e da compaixão populista. Mas também não é o caso de ficar analisando de um ponto de vista puramente estético e formalista os retratos dessa exposição.
No livro que serve de catálogo da mostra, há um prefácio do escritor Carlos Fuentes, que tenta evitar muitas efusões a respeito do tema. "Cada um dos homens, mulheres e crianças das fotografias de Rulfo possui uma riqueza imediatamente reconhecível. Chama-se dignidade. Não sempre a alegria. Mas a dignidade sim."
Pode ser. Os traços maias de um lavrador ou o garoto maltrapilho, de uns quatro ou cinco anos, com as mãos no bolso e a expressão graciosamente adulta, podem certamente evocar no espectador as imagens de um "legado cultural" resistente a séculos de pobreza e de desesperança.
Mas acho "dignidade" uma palavra meio chata: parece ser utilizada sempre que não há mais nada a falar, quando de um povo não sobra mais nada. O mais interessante nas fotos de Juán Rulfo é que esse jogo entre esperança e miséria/opressão e utopia conhece uma tradução em imagens muito pouco apelativa e politicamente correta.
Tomo como exemplo a foto de uma mulher pegando água no rio, com uma mula à sua direita e um cachorro esquálido à sua esquerda. Não vemos o rosto da mulher: ela usa um lenço na cabeça e está inclinada, segurando uma bilha de barro. Como no caso da menina entre as árvores, a mulher parece pequena dentro da foto. Uma paisagem árida, cheia de pedras, circunda a figura.
Quando você anda um pouco para trás, a imagem da mulher simplesmente desaparece. Ela fica totalmente confundida com as pedras à sua volta.
Descrevo outra foto: um grupo de quatro ou cinco camponeses no centro, muito nítidos, à frente de um galpão. E, atrás deles, alto, indiferente, um morro de pedra recortado no céu. Várias vezes se repete o esquema: homens muito pequenos diante de uma paisagem grandiosa.
A sensação que essas imagens produzem é bem ambígua. De um lado, tudo parece indicar opressão, esmagamento -seres humanos frágeis demais em relação ao meio em que se situam. A paisagem parece engoli-los.
As mesmas fotografias, entretanto, permitem a interpretação oposta. A paisagem é tão ampla, abre tais horizontes, que tudo o que tinha de impositivo no espaço como que se apresta a desatar-se no tempo. Um tempo imaginário de utopia, de emancipação.
Não há sentimentalismo nas fotos. É que o jogo entre "diminuição do homem" e "abertura infinita de possibilidades no futuro" é apresentado de modo simultâneo, numa espécie de neutralidade fotográfica, de classicismo visual.
Outro dia fiquei lendo uns poemas de Paul Éluard (1895-1952), poeta surrealista francês. Mais do que surrealista, comunista. Era uma série de poemas homenageando pintores modernos, como Picasso e Chagall. No poema dedicado a Picasso, Éluard diz, por exemplo: "A aurora está atrás da tua tela". E "este é o dia dos outros, dá uma chance para as sombras".
Outro poema, a Jacques Villon, é uma bela amostra da extrema simplicidade de Éluard, que gosta de encadear substantivos sem mais nada: "A despeito dos deuses mortos/ a despeito das mentiras/ a aurora o horizonte a água/ a ave o homem o amor (...) e a rosa noturna/ e o sangue do povo".
Comovi-me com isso e me espantei também. Como esse tipo de poema parece antiquado! Parece mais próximo de Victor Hugo do que de nós. Já se tornou estranho, na verdade, falar "no Homem", com H maiúsculo, o H de "História". Depois dos estruturalistas e de Foucault, essas coisas estão em descrédito. Outras palavras, como Esperança, desapareceram totalmente.
Coisa de comunistas. De fato, parece-nos horrível que, enquanto Picasso desenhava a sua pomba da paz e Éluard falava em auroras, milhões de inocentes eram torturados e mortos por Stálin.
Mas, se estamos totalmente distanciados desse momento ideológico -quando a arte moderna e o comunismo europeu funcionaram juntos, num movimento que vai de Picasso e Éluard a Drummond e Jorge Amado, não acho vantagem passar para um puro cinismo mecanizado, estiloso, clean. A neutralidade das fotos de Rulfo ou o "neo-humanismo" que se desprende de tantos filmes não-ocidentais talvez apontem para alguma coisa melhor.
Na dúvida, tiro férias. Volto em agosto -se é que ao dizer isso não há muito otimismo de minha parte.




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