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MARCELO COELHO
Sobre velhas utopias e algumas palavras de mau gosto
A foto , em preto-e-branco,
saiu há alguns dias aqui na
Ilustrada. Vemos uma menina de
uns oito anos, de vestido branco.
Ela está de costas, no canto inferior esquerdo, minúscula. Todo o
resto da foto é ocupado por raízes
e troncos de árvores gigantescas.
A desproporção entre a menina
e as árvores tem algo de conto de
fadas ou de pesadelo, não sei bem.
A foto faz parte de uma exposição
em cartaz no Memorial da América Latina, que traz 90 e tantos
trabalhos do artista mexicano
Juán Rulfo (1917-1986).
Rulfo é muito conhecido como
escritor. Seu romance "Pedro Páramo" é tido como um dos melhores exemplos do realismo fantástico latino-americano. No Memorial, está sua obra como fotógrafo.
Ele viajou por muitas regiões do
México, retratando camponeses,
paisagens e ruínas.
Calma, que não vamos entrar
no tema, tão ultrapassado, da
"latinidad" e da compaixão populista. Mas também não é o caso
de ficar analisando de um ponto
de vista puramente estético e formalista os retratos dessa exposição.
No livro que serve de catálogo
da mostra, há um prefácio do escritor Carlos Fuentes, que tenta
evitar muitas efusões a respeito
do tema. "Cada um dos homens,
mulheres e crianças das fotografias de Rulfo possui uma riqueza
imediatamente reconhecível.
Chama-se dignidade. Não sempre
a alegria. Mas a dignidade sim."
Pode ser. Os traços maias de um
lavrador ou o garoto maltrapilho,
de uns quatro ou cinco anos, com
as mãos no bolso e a expressão
graciosamente adulta, podem
certamente evocar no espectador
as imagens de um "legado cultural" resistente a séculos de pobreza e de desesperança.
Mas acho "dignidade" uma palavra meio chata: parece ser utilizada sempre que não há mais nada a falar, quando de um povo
não sobra mais nada. O mais interessante nas fotos de Juán Rulfo
é que esse jogo entre esperança e
miséria/opressão e utopia conhece uma tradução em imagens
muito pouco apelativa e politicamente correta.
Tomo como exemplo a foto de
uma mulher pegando água no
rio, com uma mula à sua direita e
um cachorro esquálido à sua esquerda. Não vemos o rosto da
mulher: ela usa um lenço na cabeça e está inclinada, segurando
uma bilha de barro. Como no caso da menina entre as árvores, a
mulher parece pequena dentro da
foto. Uma paisagem árida, cheia
de pedras, circunda a figura.
Quando você anda um pouco
para trás, a imagem da mulher
simplesmente desaparece. Ela fica
totalmente confundida com as
pedras à sua volta.
Descrevo outra foto: um grupo
de quatro ou cinco camponeses
no centro, muito nítidos, à frente
de um galpão. E, atrás deles, alto,
indiferente, um morro de pedra
recortado no céu. Várias vezes se
repete o esquema: homens muito
pequenos diante de uma paisagem grandiosa.
A sensação que essas imagens
produzem é bem ambígua. De um
lado, tudo parece indicar opressão, esmagamento -seres humanos frágeis demais em relação ao
meio em que se situam. A paisagem parece engoli-los.
As mesmas fotografias, entretanto, permitem a interpretação
oposta. A paisagem é tão ampla,
abre tais horizontes, que tudo o
que tinha de impositivo no espaço
como que se apresta a desatar-se
no tempo. Um tempo imaginário
de utopia, de emancipação.
Não há sentimentalismo nas fotos. É que o jogo entre "diminuição do homem" e "abertura infinita de possibilidades no futuro"
é apresentado de modo simultâneo, numa espécie de neutralidade fotográfica, de classicismo visual.
Outro dia fiquei lendo uns poemas de Paul Éluard (1895-1952),
poeta surrealista francês. Mais do
que surrealista, comunista. Era
uma série de poemas homenageando pintores modernos, como
Picasso e Chagall. No poema dedicado a Picasso, Éluard diz, por
exemplo: "A aurora está atrás da
tua tela". E "este é o dia dos outros, dá uma chance para as sombras".
Outro poema, a Jacques Villon,
é uma bela amostra da extrema
simplicidade de Éluard, que gosta
de encadear substantivos sem
mais nada: "A despeito dos deuses mortos/ a despeito das mentiras/ a aurora o horizonte a água/
a ave o homem o amor (...) e a rosa noturna/ e o sangue do povo".
Comovi-me com isso e me espantei também. Como esse tipo
de poema parece antiquado! Parece mais próximo de Victor Hugo do que de nós. Já se tornou estranho, na verdade, falar "no Homem", com H maiúsculo, o H de
"História". Depois dos estruturalistas e de Foucault, essas coisas
estão em descrédito. Outras palavras, como Esperança, desapareceram totalmente.
Coisa de comunistas. De fato,
parece-nos horrível que, enquanto Picasso desenhava a sua pomba da paz e Éluard falava em auroras, milhões de inocentes eram
torturados e mortos por Stálin.
Mas, se estamos totalmente distanciados desse momento ideológico -quando a arte moderna e
o comunismo europeu funcionaram juntos, num movimento que
vai de Picasso e Éluard a Drummond e Jorge Amado, não acho
vantagem passar para um puro
cinismo mecanizado, estiloso,
clean. A neutralidade das fotos de
Rulfo ou o "neo-humanismo" que
se desprende de tantos filmes não-ocidentais talvez apontem para
alguma coisa melhor.
Na dúvida, tiro férias. Volto em
agosto -se é que ao dizer isso
não há muito otimismo de minha
parte.
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