São Paulo, quinta-feira, 27 de junho de 2002

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ORQUESTRA DO SÉCULO 18

Quando a esperança é maior do que a revelação

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Com um programa desses, não tem erro: o melhor de Haydn e o melhor de Mozart. Mas há uma distância considerável entre ausência de erro e acerto; e infinitamente maior entre acerto e gênio. E era só uma terça-feira ordinária na ordinária cidade de São Paulo. Foi um bom concerto da Orquestra do Século 18, numa noite sem maiores pretensões.
A orquestra atacou com energia a "Sinfonia nš 83" de Haydn (1732-1809). Eletricidade, acentos, silêncio. Surpresas devidamente teatrais, que cada um vive internamente, sem deixar de se deliciar com a inteligência da música.
A 83 é conhecida como "A Galinha", por conta do segundo tema ciscador; e, em momentos assim, a qualidade de som dos instrumentos antigos é imbatível.
Também, para dar outro exemplo, no "Allegretto" do terceiro movimento, que Zehetmair fez soar só com a flauta e um quarteto de cordas. (Destaque para o flautista Konrad Hünteler -mas frustrante para a torcida local, que esperava ver Ricardo Kanji no palco.)
Haydn é uma das satisfações garantidas de quem já desenhou para si o mapa da música. Foi bom escutar sua música tocada de modo tão direto, tão franco -o modo da Europa provinciana, não o da Paris pré-Bastilha. O que só fez redobrar a força de suas ironias cosmopolitas.
Já a "Sinfonia Concertante", para violino, viola e orquestra, de Mozart (1756-91), não tem muito a ganhar com essa inversão. Composta em 1779, na mais-que-provinciana Salzburgo, concentra milagres excepcionais até para os padrões de Mozart. E isso literalmente desde o primeiro acorde, que recompõe na orquestra inteira o som da viola. A possibilidade de encenar dramaticamente entradas e diálogos dos instrumentos, como se fossem parte de um drama, mas sem perder por um segundo a coerência orgânica da música -em outras palavras: o estilo clássico-, chega aqui a um ponto insuperado e insuperável.
Tanto mais charmoso o efeito dos solistas, Zehetmair (violino) e Ruth Killius (viola), de costas para a platéia no início, girando aos poucos, até a entrada do seu primeiro tema. Os dois tiveram grandes momentos juntos, com requintes de dinâmica minuciosamente sincronizados. Em particular na cadência do segundo movimento, com a música quase perdida no silêncio, refazendo-se, de dentro para fora de si, e convocando a atenção de todos nós, de fora para dentro de Mozart.
Pena que a atenção do resto da orquestra nem sempre estivesse no mesmo plano. Acontece, e nem chegou a ser grave (mas também não irrelevante).
O melhor e o pior dessa "Sinfonia Concertante": certo espírito campestre, que se acentuou, depois, na "Sinfonia nš 39". As beatitudes da 39 foram traduzidas por Zehetmair para um idioma mais duro e mais puro, tanto do ponto de vista acústico quanto afetivo. Mas a esperança de pureza soou maior do que a revelação; e o que funciona tão bem em Haydn exige outro grau de filosofia para Mozart.
É aquela distância entre acertos que se persegue sempre, com resultados variáveis, de um lado e de outro do palco -até numa noite ordinária, na extraordinária São Paulo.


Orquestra do Século 18    
Programa: Haydn, Mozart, Mendelssohn
Onde: teatro Cultura Artística (r. Nestor Pestana, 198, tel. 0/xx/11/3258-3344)
Quando: hoje, às 21h
Quanto: de R$ 90 a R$ 180 (R$ 10 para estudantes, meia hora antes do espetáculo)




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