São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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MÚSICA

Ex-beatle sai em turnê, toca pela primeira vez "Helter Skelter" e diz que não pode incluir canções novas nos shows

McCartney, 62, retorna "escravo de hits"

BRUNO LESPRIT
DO "LE MONDE", EM OSLO

Em meio a uma turnê européia, entre a passagem de som e seu primeiro show em Oslo, sir James Paul McCartney, 62, concedeu esta entrevista. O músico continua fiel à imagem perene: uma mistura de descontração, desenvoltura e extremo profissionalismo.
Logo de início, McCartney evoca o nome de Ray Charles, morto em 10 de junho, que suscita suas recordações. No começo de carreira, os Beatles gravaram "I Got a Woman" e "What I'd Say":
"Em Liverpool, a única estação de rádio que pegávamos costumava tocar coisas muito ruins. Mas em uma noite o DJ decidiu tocar "What I'd Say". Uau! Aquele riff no piano elétrico! O trecho terminava e o DJ dizia, "Esperem, continua do outro lado". Eu achava genial que aquele cara usasse dois lados de um disco para gravar a mesma música. "What I'd Say" abalou minha vida antes mesmo que o DJ me revelasse o autor. Nós amávamos Ray".
 

Pergunta - O sr. pretende homenagear Ray Charles na turnê?
Paul McCartney -
Eu fiz isso no final dos anos 80, cantando "Don't Let the Sun Catch You Cryin'", ao piano. Mas não fiquei muito satisfeito. Como adoro a versão seca e direta que Ray gravou de "Eleanor Rigby", preferi dedicá-la a ele no dia seguinte à sua morte.

Pergunta - Pessoas nostálgicas pelos Beatles lotam os seus shows. Há algumas canções, como "Yesterday", "Let it Be" ou "Hey Jude", que o sr. precisa imperativamente tocar, para satisfazê-las?
McCartney -
Sim. Se eu fosse um espectador, também me sentiria assim. O que é interessante é que as pessoas que pedem esses títulos não são parte da minha geração, obrigatoriamente. Crianças pequenas, de oito e 10 anos, cantam "Hey Jude". É uma relação diferente, como a que eu teria com Fred Astaire ou Nat King Cole.

Pergunta - Há, por outro lado, canções de seu catálogo que o sr. não pode tocar hoje porque acredita que seriam fracas ou estariam muito fora de moda?
McCartney -
Quando escolho uma canção, me certifico de que a letra ainda faça sentido. Veja os últimos versos de "Drive My Car": "I've got no car/But I found a driver" [Não tenho carro/ mas tenho motorista]. É aquele senso de ironia que existia em nossas melhores canções. O que dita a escolha do repertório atual, acima de tudo, é que tocamos principalmente em estádios. Temos de nos adaptar a essa situação procurando um denominador comum: os sucessos que as pessoas conhecem. Não posso mais incluir muitas canções novas. Em um clube pequeno, eu tocaria coisas que vocês nunca ouviram, como a canção que acabei de compor, "That Seems to Make no Sense".

Pergunta - Pela primeira vez o sr. está tocando "Helter Skelter", a canção mais violenta do repertório dos Beatles, em um show. Muita gente ignora que seja o sr. o autor. É uma maneira de abandonar a imagem do Paul adocicado?
McCartney -
Não, mesmo que eu consiga compreender a interpretação. O importante é que a canção funciona bem nos estádios. Muita gente pedia, mas sempre hesitei. A música terminou associada ao caso Charles Manson, o responsável pelo massacre da atriz Sharon Tate e seus amigos, em Los Angeles, em 1969, supostamente inspirado por "Helter Skelter" e trechos do "álbum branco". Mas a canção tratou sempre de um grande barulho, como o que se ouve quando o Concorde decola, para evocar simbolicamente queda e elevação.

Pergunta - As versões que o sr. interpreta tomam muitas liberdades com os originais... É difícil transformá-las, como autor?
McCartney -
Mas sempre vejo as coisas do ponto de vista do público. Digamos que eu vá a um show de Bob Dylan, um sujeito que costuma fazer esse tipo de mudança. Minha vontade é ouvir "Mr. Tambourine Man". Se a versão é muito diferente, se os erros vocais de Dylan são caricaturados, eu vou achar interessante, mas não vou gostar muito. "Você prefere que ele as cante como em 1965?" Não, porque jamais seguimos religiosamente as versões originais. Mas, como espectador dos Rolling Stones, eu preferiria reconhecer o riff de "Satisfaction". Poderíamos, por exemplo, tocar todas as minhas canções usando uma base de um acorde só ré maior, por exemplo. Eis uma idéia revolucionária! A turnê vai se chamar D Tour! (Jogo de palavras entre "turnê em ré", "a turnê" e "desvio".) Isso seria muito fácil. As pessoas querem reconhecer as canções.

Pergunta - O sr. acaba de participar da canção "A Friend Like You" no novo disco de Brian Wilson. É a primeira vez que trabalham juntos desde "Vegetables", de 1967, quando o senhor tocou percussão com legumes.
McCartney -
É, desta vez ele me deixou cantar!

Pergunta - Os Beach Boys foram os principais rivais dos Beatles, em vez dos Rolling Stones?
McCartney -
Rival não é bem o termo. A palavra sugere que nos detestávamos reciprocamente. Mas eles eram de fato a principal concorrência. Os Stones eram sérios adversários, mas para mim, em termos de composição, os mais perigosos eram os Beach Boys. Mas era uma competição amistosa, nos inspirávamos mutuamente. Nós gravamos "Rubber Soul" e Brian, "Pet Sounds"; nós gravamos "Sargent Peppers" e ele abandonou o jogo.

Pergunta - Que artistas de rock, aos seus olhos, foram grandes inovadores, depois que os Beatles se separaram?
McCartney -
Led Zeppelin é um grande grupo. Hum, quem mais?

Pergunta - O sr. se interessou pelo movimento punk?
McCartney -
Em termos gerais apenas, não acompanhei bem. Os Sex Pistols eram muito bons, mas infelizmente muito suicidas. "Pretty Vacant" é uma excelente canção. E havia também o Clash.

Pergunta - O sr. acredita que no fundo tudo de essencial tenha sido composto nos anos 60?
McCartney -
Há muitos grupos bons hoje em dia, como Radiohead e Coldplay, mas se houve uma década que concentrou o que havia de melhor, foi aquela: Hendrix, Dylan, Beatles, Stones, Beach Boys. Foram anos radiantes. Depois, as coisas ficaram sérias, a música virou indústria.

Pergunta - Imaginava cantar "When I'm 64" aos 62 anos?
Resposta -
Em última análise, a canção era bem mais lúcida do que "My Generation", do Who. Eu me diverti ao compô-la. A melodia me ocorreu quando eu tinha 16 anos, ao piano, em nossa casa em Liverpool. Escrevi a letra mais tarde, na metade dos anos 60. Uma das ironias era prever os nomes dos meus netos, Vera, Chuck e Dave.
Mas a canção também continha angústia; "Você vai continuar me amando, quando eu envelhecer?" Agora, a dois anos da ocasião, a coisa me parece bizarra. A canção foi só uma brincadeira; eu não me imaginava de forma alguma como alguém de 64 anos. Preciso começar a preparar a turnê "When I'm 64" e, logo antes da D Tour, a minha turnê punk.


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