São Paulo, segunda-feira, 27 de junho de 2005

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LITERATURA

Chico Buarque é vencedor do 2º Concurso Miss Cultura para trechos literários; Adélia Prado leva Miss Simpatia

Da passarela das bibliotecas, escritores elegem miss

JULIÁN FUKS
ENVIADO ESPECIAL A PORTO ALEGRE

Palavras bem torneadas, rimas rijas, estilo no caminhar das frases. Respiração autoral equilibrada, espinha dorsal ereta, olhar alto e preciso, abrangente. O balançar de um lado a outro das sílabas, como cachos de uma cabeleira, no molejo do salto alto a passear pela passarela das páginas. Vinte centímetros de prosa, 30 de verso. Cacofonias e deslizes verbais são desclassificatórios.
"A beleza do texto é fundamental", dizem os escritores Fabrício Carpinejar e Marcelo Carneiro da Cunha, organizadores do 2º Concurso Miss Cultura para trechos literários. Um concurso de beleza em que as beldades são os livros.
Os dois idealizaram o concurso como forma de fazer um sarau diferente. A cada mês, junta-se a dupla um convidado especial. Com a convidada desta edição, Cíntia Moscovitch, também escritora gaúcha, eles apresentam em leitura cada uma de suas cinco candidatas postulantes ao título supremo e universal, escolhidas após 30 dias de processos seletivos prévios, na biblioteca mental de cada um dos três. O público, cerca de 40 pessoas em uma livraria de Porto Alegre, ouve atento aos textos e vota para definir a cada mês a mais nova Miss Cultura.
Como tema desta edição, o fantasma abominado pelas belezas tradicionais: comida e dieta. Os candidatos, com perdão do ofensivo trocadilho, são autores de peso. O primeiro a desfilar é Fernando Pessoa, com o poema "Dobrada à Moda do Porto", lido por Moscovitch. Em seguida, João Guimarães Rosa, montado num lindo "O Cavalo que Bebia Cerveja", também entra na passarela.
Mais tarde, o americano Philip Roth desfila com seu "O Complexo de Portnoy" e o argentino Juan José Saer expõe as delícias de um churrasco canibal em "O Enteado". Todos são, braços cruzados às costas e olhos ansiosos esperando o resultado, lado a lado derrotados.
O vencedor, Miss Cultura de Junho de 2005, desponta na passarela sob rumores e polêmica. "Com vocês, meu terceiro candidato", anuncia Cunha e nada lê. Do alto, o som na caixa, e a música "Feijoada Completa", de Chico Buarque. Carpinejar não se contenta, quer a desclassificação imediata do candidato: "Não é literatura". Moscovitch pondera, é, não é, é, não é. O público vota e decide: Chico Buarque não é desclassificado e mais tarde será novamente votado pela maioria, para abocanhar o título de beldade-mor.
O segundo lugar, Princesa da Noite, é disputado em segundo turno pela zebra José Candido de Carvalho, com "Bifes à Milanesa com Farinha de Caco de Vidro", e Adélia Prado, com seu adequado "Casamento". Cunha faz a defesa de seu candidato: "Os textos de Carvalho são as coisas mais humorísticas que eu conheço na literatura brasileira." Carpinejar se indigna novamente: "Mas que discurseira é essa aí? Agora vai fazer tese?" Prado pertence a Moscovitch e acaba ficando com o terceiro lugar. Não deixa de ser boa ironia: Adélia Prado é eleita Miss Simpatia. Resta saber o que pensaria a própria autora disso.

Hora das justificativas
A teoria por trás da divertida prática do concurso vai além de parodiar o mundo fashion. "Estamos afirmando a necessidade de beleza no texto literário, o que significa reflexão, contemplação e construção de frases belas", diz Carpinejar, tão seriamente como esperariam os leitores de seu livro de poemas "Como no Céu", recém-lançado pela Bertrand Brasil.
Cunha, autor de novelas infanto-juvenis e do romance para adultos "Nosso Juiz" (Record), completa: "É grego o negócio: a arte é o que é belo aos olhos e aos ouvidos". Aproveita ainda para justificar a pertinência do evento: "O sarau é uma forma de socializar a experiência da literatura, que é quase sempre solitária e linear. Agora recuperamos essa tradição antiga de ler textos em público, mas de um modo menos formal do que no passado".
Promover a votação do melhor texto e também a competição e rixa fictícia entre aqueles que os selecionam previamente são ingredientes fundamentais à receita do evento. "A proposta é que tanto nós quanto o público encarnemos o texto, que o tomemos com o mesmo zelo e religiosidade como se fosse nosso", diz Carpinejar, cujas leituras dramáticas entusiasmadas irritavam Cunha. "Nada de leituras histriônicas", ele estabelecera no início. Carpinejar se recusou a obedecer a ordem, seguindo, talvez, a idéia central de tudo o que se fez ali.

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