São Paulo, quarta-feira, 27 de junho de 2007

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Kusturica exibe ópera punk em Paris

Cineasta bósnio, ganhador de duas Palmas de Ouro, fala à Folha sobre sua adaptação do filme "O Tempo dos Ciganos"

Universo cigano é transposto para o famoso palco da Bastilha, com gansos, cães e caixotes de papelão que se movem

Sébastien Mathé/Divulgação
O personagem Ahmed (ao centro), interpretado pelo ator Nenad Jankovic, na ópera punk "O Tempo dos Ciganos", baseada em filme do bósnio Emir Kusturica, com participação de cães e gansos

ANA CAROLINA DANI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS

Habituada a receber as mais célebres obras de Verdi, Mozart ou Puccini, a Ópera da Bastilha de Paris mergulha no universo do cineasta bósnio Emir Kusturica e apresenta, desde o último fim de semana, uma adaptação musical de seu filme "O Tempo dos Ciganos". A ópera punk, dirigida pelo próprio cineasta e cantada em língua cigana, marca a primeira incursão de Kusturica no universo teatral.
Na pré-estréia de "O Tempo dos Ciganos", no domingo, o cineasta acompanha a apresentação na platéia. No palco, mulheres entoam cantos de inspiração tradicional.
De repente, a cena é tomada por ciganos que cantam e dançam, representando situações do cotidiano. Caixotes de papelão se arrastam sozinhos, gansos atravessam um cenário mambembe, quase surreal. A tradicional orquestra foi substituída, em parte, por músicos de rock que contracenam com os atores.
"O Tempo dos Ciganos", o filme, consagrou Kusturica como melhor diretor no Festival de Cannes, em 1989. A história, rodada em um bairro cigano da periferia de Skopje, capital da Macedônia, tinha como personagem principal Perhan, um adolescente que, ao se envolver com um bando de mafiosos, perdia a inocência da infância para seguir um destino marcado pela desilusão.
Apresentado desde o início como uma história de amor, "O Tempo..." é um drama poético que pereniza o sofrimento e a vida errante do povo cigano. Um filme de uma beleza estética alucinante, em que a música não é somente performance, mas parte da trama.
Como transpor para a ópera o universo poético de Kusturica, fortemente ligado ao poder das imagens, que tão bem ilustraram o movimento perpétuo dos ciganos? "É muito estranho como a ópera e o teatro são espaços abstratos", responde Kusturica à Folha. "Eles se encaixam muito mais nos meus filmes do que na realidade. Mas é importante dizer que essa ópera não será uma peça clássica. Ela será uma espécie de versão punk do que a ópera poderia ter sido caso a música punk tivesse surgido mais cedo."
Para o diretor da Bastilha, Gérard Mortier, cada filme de Kusturica "é uma ópera em potencial". O projeto nasceu há cerca de cinco anos, a partir de uma idéia de Marc di Domenico, produtor do No Smoking Orchestra, grupo de rock criado em Saravejo nos anos 80 do qual participa Kusturica.
"No início, achamos a idéia completamente descabida, nunca tínhamos feito ópera antes e o peso de um instituição assim impressionava. Felizmente, tudo deu certo", afirma o diretor bósnio.

Enredo mais simples
A versão para ópera não é uma cópia literal do filme de Kusturica. Para adaptá-la, o cineasta simplificou a trama, para guardar os dois elementos principais: o amor de Perhan pela jovem Azra e o tráfico de crianças ciganas.
"Essa ópera se aproxima do meu filme no que diz respeito ao conflito, mas, em relação à música e ao modo como encenamos, tem mais a ver com uma peça de arte contemporânea", explica o diretor.
O texto é de autoria de Nenad Jankovic e a direção musical ficou a cargo de Dejan Sparavalo, ambos da No Smoking Orchestra, que divide a interpretação das melodias com a Garbage Serbian Philarmonia.
No palco, o "espírito da obra", como diz o cineasta, foi preservado, mas Kusturica não hesitou em desconstruir seu próprio universo, incorporando à peça elementos exteriores ao filme, como imagens de um drible fantástico de Maradona ou cenas do filme "Taxi Driver", de Martin Scorsese.
Somente os dois temas principais da trilha sonora original de "O Tempo...", de autoria de Goran Bregovic, foram retomados integralmente. As outras músicas, que misturam ritmos ciganos, rock, punk e música lírica, foram compostas por Stribor Kusturica -filho do cineasta-, Dejan Sparavalo e Nenad Jankovic, integrantes do No Smoking Orchestra. Ao todo são 50 figurantes e 16 vozes, sem falar nos cerca de 20 gansos que "contracenam" com os atores-cantores.
Recentemente, Kusturica, 52, disse que não tardaria em abandonar a "carreira" de músico. Mas, atenção, em 1995, após receber a segunda Palma de Ouro no Festival de Cannes com "Underground", ele afirmara que não faria mais filmes. E ele continua a lançar longas, como "Promise me This", exibido na mais recente edição de Cannes.


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