São Paulo, sábado, 27 de junho de 2009

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LIVROS

Crítica/"Outra Vida"

Tensão narrativa se dissipa em sucessão de lugares comuns

Psicologização de personagens soa estereotipada no novo livro de Rodrigo Lacerda, que também participa da 7ª Flip

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A narrativa de "Outra Vida", de Rodrigo Lacerda, se ocupa de uma situação banal. Um sujeito de extração humilde engravida e casa com uma moça da elite de uma pequena cidade. Graças à sogra, consegue uma sinecura numa estatal com sede na metrópole. A mulher, sob o império da mãe, pressiona o marido a ter ambição, ao mesmo tempo em que tem dificuldade para aceitar a filha. Acaba amante do chefe do marido, enquanto o marido, pacato, aceita suborno numa licitação. Após denúncia, decide voltar com a família para a antiga cidade.
A situação é, pois, mais típica, que particular. A forma narrativa acentua essa natureza generalizante. Chama as personagens pela sua função na economia doméstica: "marido", "homem", "mulher", "filha" e "amante", e adota um ponto de vista de terceira pessoa onisciente, de observação neutra. A narrativa se desenvolve pela articulação de dois procedimentos. De um lado, acompanha os dilemas das personagens, produzindo um aprofundamento psicológico da aparente simplicidade inicial. De outro, organiza a sincronização dos acontecimentos em torno da hora de saída do ônibus, na rodoviária, que levaria a família de volta à cidade de origem.
O primeiro procedimento resulta, infelizmente, mal. Quando se aplica a escuta neutra às personagens típicas, o resultado não é complexidade psicológica, mas uma coleta de raciocínios tipificados, uma expansão ou escansão do núcleo estereotipado em lugares comuns. Poderia haver um gosto perverso em produzir esse tipo de preenchimento dedutivo: explicitar toda a porcaria sob a porcaria de origem. Mas não haveria avanço analítico, pois o mapa da banalidade já está praticamente inteiro no convencionalismo inicial. Psicologizar não individualiza as personagens, apenas expande a convencionalização.
No pior dos casos, ocorre naturalização de estereótipos e não "hiperrealismo": "Muitas vezes, enquanto trepava com a mulher, prestando atenção em detalhes hiperrealistas da cena sexual, cogitava o que o marido sentiria se soubesse, se os visse ali, se ouvisse a mãe de sua filha gemendo com outro homem na cama". O efeito geral é redundante. O estereótipo ganha foros de alegoria do mundo.
O segundo procedimento é o que o livro tem de melhor. A situação típica é concentrada, dramatizada em torno de um momento único. A operação torna o livro apto para se tornar um bom conto, com suspensão e expectativa narrativa, mas não se impõe sobre o conjunto distendido do romance.
Bem realizada no ápice, quando ocorre o desaparecimento da menina e momentos de desespero, a tensão acaba diluída nas digressões que consomem a narrativa. Perder o nervo que sincroniza os eventos com a iminência do desastre equivale a perder a partida.

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)


OUTRA VIDA

Autor: Rodrigo Lacerda
Editora: Alfaguara
Quanto: R$ 39,90 (184 págs.)
Avaliação: regular




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