São Paulo, sábado, 27 de junho de 2009

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LIVROS

Crítica / "A Grande História da Evolução"
Dawkins baixa a guarda para religião

Escritor britânico refaz o caminho evolutivo de trás para a frente mantendo interesse do leitor em volume de 700 páginas

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Quem leu com enfado a investida de Richard Dawkins -estrela da 7ª Festa Literária Internacional de Paraty- contra a religião, em "Deus, um Delírio", lerá aliviado este "A Grande História da Evolução". É mesmo um grande livro. Seria uma lástima se poucos mostrassem fôlego para atravessar suas 703 páginas (fora anexos).
O alívio será triplo. Primeiro, porque Dawkins consegue manter seu excelente estilo na maioria das muitas páginas. Depois, porque o britânico consegue manter sob controle dois de seus vícios, o desprezo por quem acredita em deus(es) e o endeusamento do DNA. Por fim, porque consegue manter o interesse do leitor em toda a longa narrativa que leva do homem ao ancestral comum de todos os seres vivos da Terra, há mais de 3 bilhões de anos.
É uma história complexa, como a evolução da vida. Nesse livro de 2004, anterior a "Deus, um Delírio", Dawkins adota um expediente engenhoso: refazer o caminho evolutivo de trás para a frente. Parte das espécies como elas são hoje e ruma para o passado, como quem escala uma árvore da vida de ponta-cabeça.

Evolução para leigos
A estratégia perde um pouco da graça, ao menos para o leitor brasileiro, quando Dawkins equipara o percurso imaginário ao do albergueiro nos "Contos de Cantuária", de Geoffrey Chaucer (1343-1400).
É o tipo do floreio que sugere um contato apenas superficial da divulgação científica com o universo literário, sem estabelecer um diálogo real. O título original inglês é "Contos do Ancestral - Uma Peregrinação à Alvorada da Vida", mais fiel ao dispositivo. Cada um dos 40 "encontros" (capítulos) do Homo sapiens com seus ancestrais -neandertais, bonobos, camundongos, tatus, dodôs, salamandras... até chegar às bactérias- ganha vários contos, como os do clássico quatrocentista.
Contos, vírgula. Não chegam a ser narrativas. E nem sempre contam coisas diretamente relacionadas com o organismo do título. Vários tentam destrinchar itens cabeludos da genética e da evolução para leigos. Alguns conseguem.

Passeio fascinante
As primeiras cem páginas são duras de roer por quem não tenha interesse e algum conhecimento prévio de biologia. A partir daí, Dawkins embala e conduz o leitor num passeio fascinante pela melhor literatura sobre o mundo natural. São páginas inspiradas, várias sobre organismos de que nunca se ouviu falar.
Como a vaca-marinha-de-steller, com mais de cinco toneladas, que vivia no estreito de Bering. Bastaram 27 anos de caça para extingui-la, no século 18. Outros mais familiares (por assim dizer), como o ornitorrinco e seu bico-sensor, ganham luz nova sob a redação brilhante: "Quando você pensar em um ornitorrinco, esqueça os patos; pense no Nimrod, pense no Awacs [aviões com radares sensíveis]. Pense numa mão enorme tateando, percebendo por meio de formigamentos remotos; pense na luz do relâmpago e no estrondo do trovão propagando-se pelos lamaçais da Austrália".

Surpresa final
A tradução pode não ser perfeita, mas dá conta do recado. Já uma revisão mais cuidada teria afastado alguns poucos erros constrangedores numa obra sobre ciência, como a troca de bilhão por milhão (pág. 212) e de bilhão por trilhão (pág. 301) de anos.
O mais surpreendente Dawkins reservou para o final. Mesmo reafirmando seu "desdém pela reverência quando o objeto é qualquer coisa sobrenatural", o zoólogo-escritor baixa a guarda diante da religião: "Minha objeção a crenças sobrenaturais é justamente porque não fazem de forma alguma justiça à sublime grandiosidade do mundo real. Elas representam um estreitamento da realidade, um empobrecimento de tudo o que o mundo real tem a oferecer", professa. "Desconfio que muitos dos que se intitulam religiosos acabariam concordando comigo."


A GRANDE HISTÓRIA DA EVOLUÇÃO - NA TRILHA DOS NOSSOS ANCESTRAIS

Autor: Richard Dawkins
Tradução: Fabio Uehara
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 59 (792 págs.)
Avaliação: bom




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