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LIVROS
Crítica / "A Grande História da Evolução"
Dawkins baixa a guarda para religião
Escritor britânico refaz o caminho evolutivo de trás para a frente mantendo interesse do leitor em volume de 700 páginas
MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA
Quem leu com enfado a
investida de Richard
Dawkins -estrela da
7ª Festa Literária Internacional de Paraty- contra
a religião, em "Deus, um Delírio", lerá aliviado este "A Grande História da Evolução". É
mesmo um grande livro. Seria
uma lástima se poucos mostrassem fôlego para atravessar
suas 703 páginas (fora anexos).
O alívio será triplo. Primeiro,
porque Dawkins consegue
manter seu excelente estilo na
maioria das muitas páginas.
Depois, porque o britânico consegue manter sob controle dois
de seus vícios, o desprezo por
quem acredita em deus(es) e o
endeusamento do DNA. Por
fim, porque consegue manter o
interesse do leitor em toda a
longa narrativa que leva do homem ao ancestral comum de
todos os seres vivos da Terra,
há mais de 3 bilhões de anos.
É uma história complexa, como a evolução da vida. Nesse livro de 2004, anterior a "Deus,
um Delírio", Dawkins adota um
expediente engenhoso: refazer
o caminho evolutivo de trás para a frente.
Parte das espécies como elas
são hoje e ruma para o passado,
como quem escala uma árvore
da vida de ponta-cabeça.
Evolução para leigos
A estratégia perde um pouco
da graça, ao menos para o leitor
brasileiro, quando Dawkins
equipara o percurso imaginário
ao do albergueiro nos "Contos
de Cantuária", de Geoffrey
Chaucer (1343-1400).
É o tipo do floreio que sugere
um contato apenas superficial
da divulgação científica com o
universo literário, sem estabelecer um diálogo real.
O título original inglês é
"Contos do Ancestral - Uma
Peregrinação à Alvorada da Vida", mais fiel ao dispositivo. Cada um dos 40 "encontros" (capítulos) do Homo sapiens com
seus ancestrais -neandertais,
bonobos, camundongos, tatus,
dodôs, salamandras... até chegar às bactérias- ganha vários
contos, como os do clássico
quatrocentista.
Contos, vírgula. Não chegam
a ser narrativas. E nem sempre
contam coisas diretamente relacionadas com o organismo do
título. Vários tentam destrinchar itens cabeludos da genética e da evolução para leigos. Alguns conseguem.
Passeio fascinante
As primeiras cem páginas são
duras de roer por quem não tenha interesse e algum conhecimento prévio de biologia. A
partir daí, Dawkins embala e
conduz o leitor num passeio
fascinante pela melhor literatura sobre o mundo natural.
São páginas inspiradas, várias sobre organismos de que
nunca se ouviu falar.
Como a
vaca-marinha-de-steller, com
mais de cinco toneladas, que vivia no estreito de Bering. Bastaram 27 anos de caça para extingui-la, no século 18.
Outros mais familiares (por
assim dizer), como o ornitorrinco e seu bico-sensor, ganham luz nova sob a redação
brilhante: "Quando você pensar em um ornitorrinco, esqueça os patos; pense no Nimrod,
pense no Awacs [aviões com radares sensíveis]. Pense numa
mão enorme tateando, percebendo por meio de formigamentos remotos; pense na luz
do relâmpago e no estrondo do
trovão propagando-se pelos lamaçais da Austrália".
Surpresa final
A tradução pode não ser perfeita, mas dá conta do recado.
Já uma revisão mais cuidada
teria afastado alguns poucos erros constrangedores numa
obra sobre ciência, como a troca de bilhão por milhão (pág.
212) e de bilhão por trilhão
(pág. 301) de anos.
O mais surpreendente Dawkins reservou para o final. Mesmo reafirmando seu "desdém
pela reverência quando o objeto é qualquer coisa sobrenatural", o zoólogo-escritor baixa a
guarda diante da religião:
"Minha objeção a crenças sobrenaturais é justamente porque não fazem de forma alguma
justiça à sublime grandiosidade
do mundo real. Elas representam um estreitamento da realidade, um empobrecimento de
tudo o que o mundo real tem a
oferecer", professa. "Desconfio
que muitos dos que se intitulam religiosos acabariam concordando comigo."
A GRANDE HISTÓRIA DA EVOLUÇÃO - NA TRILHA DOS NOSSOS ANCESTRAIS
Autor: Richard Dawkins
Tradução: Fabio Uehara
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 59 (792 págs.)
Avaliação: bom
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