São Paulo, sábado, 27 de junho de 2009

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Crítica/"Crônicas Inéditas 2"

Bandeira cria crônicas que têm seriedade da crítica

Em textos surpreendentes, autor une erudição, graça humilde e desconfiança

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Sobre um retrato que Portinari fez de Manuel Bandeira, o próprio poeta se diz retratado em uma ambiência de "tranquilo lirismo corrigido pelo ar de pé atrás". Nada melhor do que essa autodefinição para compreender a poesia e, mais ainda, a crônica crítica do nosso maior "poeta menor". Bandeira, o autor homenageado da 7º Flip, é menor -menor porque seu corte, sua entrada na vida, é feito por portinholas, e porque sua palavra vem do húmus, da terra da língua. E, nessa minoridade lírica, não há outro maior do que ele.
Em "Crônicas Inéditas 2", lançamento da Cosac Naify, a precisão do pé atrás, da desconfiança necessária a todo crítico, aliada a uma graça humilde ao mesmo tempo erudita e familiar, fazem com que a leitura seja sempre uma surpresa. Marques Rebelo, por exemplo, é o conhecedor da "humanidade da Rua Emerenciana"; a palavra "sophistication" é "danada pra atrapalhar a gente"; a um outro Manuel Bandeira, homônimo mas péssimo pintor, o autor diz: "Xará, não leve a mal"; e, para configurar o fenômeno Brasil, nada como essa frase, sobre um cavalo azarão: "A revolução não dará talvez a felicidade ao Brasil, mas afinal de contas o Brasil é capaz de produzir Mossoró".
Eis aí nosso país, com o lirismo e o pé atrás que nem Macunaíma nem Serafim Ponte Grande conseguiram (ou puderam) ter. E, simultaneamente a essa delicadeza eficaz, nestas crônicas encontra-se um traço que, infelizmente, tem sido raro nas crônicas e críticas atuais: saber falar mal; bem mal.
Tal tradução é "péssima"; os pintores brasileiros "não sabem pintar"; outra tradutora é ótima, mas o livro é "medíocre"; e, para arrematar, "a vantagem dos críticos está em não comprar; a desvantagem, às vezes, em ler". Faz realmente muita falta a possibilidade de fundir a ligeireza da crônica à suposta seriedade da crítica, fusão que permite que os aspectos negativos de um livro ou de uma obra soem mais como possibilidades de abertura do que como verdades intocáveis.
Como em tudo na obra de Bandeira, não existem verdades ou conclusões fechadas. A poesia, língua da dubiedade e das brechas, está por toda a parte. E seu amigo Mário de Andrade já dizia desconfiar seriamente das pessoas portadoras de certezas. Como exemplo da recusa de Bandeira à mitomania, há no livro uma crônica fascinante sobre Machado de Assis, já então tido como intocável.
O poeta conta como teve a "fortuna de conhecer o mestre" dentro de um bonde, onde, vaidoso por lembrar de uma estrofe de "Os Lusíadas", se encabula em seguida por esquecer a anterior. Mas a reverência ao mestre não o impede de chamá-lo de "grande esquizóide" e de dizer que sua vida foi pautada por um grande egoísmo.

Consciência histórica
Julio Castañon Guimarães fez a organização, o posfácio e as notas destas crônicas, que começaram a ser escritas em periódicos e revistas a partir dos anos 30, uma década iluminada e iluminista para a formação da consciência nacional. A euforia dos anos 20, de que Bandeira não foi militante ativo, arrefece e dá lugar a uma profunda consciência histórica.
Como mostra o organizador, estes textos partilham desta atmosfera. Junto com estas crônicas em tudo essenciais, a editora lança também a "Apresentação da Poesia Brasileira" (R$ 69, 504 págs.), com posfácio de Otto Maria Carpeaux, livro em que o poeta exerce ainda o papel de professor de literatura. Não temos mais o professor, nossa crítica anda rasa, "a chácara triste não existe mais", mas "o menino", esse "ainda existe". Leia.


CRÔNICAS INÉDITAS 2

Autor: Manuel Bandeira
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 69 (464 págs.)
Avaliação: ótimo




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