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Crítica/"Crônicas Inéditas 2"
Bandeira cria crônicas que têm seriedade da crítica
Em textos surpreendentes, autor une erudição, graça humilde e desconfiança
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Sobre um retrato que Portinari fez de Manuel
Bandeira, o próprio poeta se diz retratado em uma ambiência de "tranquilo lirismo
corrigido pelo ar de pé atrás".
Nada melhor do que essa autodefinição para compreender
a poesia e, mais ainda, a crônica
crítica do nosso maior "poeta
menor". Bandeira, o autor homenageado da 7º Flip, é menor
-menor porque seu corte, sua
entrada na vida, é feito por portinholas, e porque sua palavra
vem do húmus, da terra da língua. E, nessa minoridade lírica,
não há outro maior do que ele.
Em "Crônicas Inéditas 2",
lançamento da Cosac Naify, a
precisão do pé atrás, da desconfiança necessária a todo crítico,
aliada a uma graça humilde ao
mesmo tempo erudita e familiar, fazem com que a leitura seja sempre uma surpresa.
Marques Rebelo, por exemplo, é o conhecedor da "humanidade da Rua Emerenciana"; a
palavra "sophistication" é "danada pra atrapalhar a gente"; a
um outro Manuel Bandeira,
homônimo mas péssimo pintor, o autor diz: "Xará, não leve
a mal"; e, para configurar o fenômeno Brasil, nada como essa
frase, sobre um cavalo azarão:
"A revolução não dará talvez a
felicidade ao Brasil, mas afinal
de contas o Brasil é capaz de
produzir Mossoró".
Eis aí nosso país, com o lirismo e o pé atrás que nem Macunaíma nem Serafim Ponte
Grande conseguiram (ou puderam) ter. E, simultaneamente a
essa delicadeza eficaz, nestas
crônicas encontra-se um traço
que, infelizmente, tem sido raro nas crônicas e críticas atuais:
saber falar mal; bem mal.
Tal tradução é "péssima"; os
pintores brasileiros "não sabem pintar"; outra tradutora é
ótima, mas o livro é "medíocre"; e, para arrematar, "a vantagem dos críticos está em não
comprar; a desvantagem, às vezes, em ler". Faz realmente
muita falta a possibilidade de
fundir a ligeireza da crônica à
suposta seriedade da crítica, fusão que permite que os aspectos negativos de um livro ou de
uma obra soem mais como possibilidades de abertura do que
como verdades intocáveis.
Como em tudo na obra de
Bandeira, não existem verdades ou conclusões fechadas. A
poesia, língua da dubiedade e
das brechas, está por toda a
parte. E seu amigo Mário de
Andrade já dizia desconfiar seriamente das pessoas portadoras de certezas.
Como exemplo da recusa de
Bandeira à mitomania, há no livro uma crônica fascinante sobre Machado de Assis, já então
tido como intocável.
O poeta conta como teve a
"fortuna de conhecer o mestre"
dentro de um bonde, onde, vaidoso por lembrar de uma estrofe de "Os Lusíadas", se encabula em seguida por esquecer a
anterior. Mas a reverência ao
mestre não o impede de chamá-lo de "grande esquizóide" e
de dizer que sua vida foi pautada por um grande egoísmo.
Consciência histórica
Julio Castañon Guimarães
fez a organização, o posfácio e
as notas destas crônicas, que
começaram a ser escritas em
periódicos e revistas a partir
dos anos 30, uma década iluminada e iluminista para a formação da consciência nacional. A
euforia dos anos 20, de que
Bandeira não foi militante ativo, arrefece e dá lugar a uma
profunda consciência histórica.
Como mostra o organizador,
estes textos partilham desta atmosfera. Junto com estas crônicas em tudo essenciais, a editora lança também a "Apresentação da Poesia Brasileira" (R$ 69, 504 págs.), com posfácio de
Otto Maria Carpeaux, livro em
que o poeta exerce ainda o papel de professor de literatura.
Não temos mais o professor,
nossa crítica anda rasa, "a chácara triste não existe mais",
mas "o menino", esse "ainda
existe". Leia.
CRÔNICAS INÉDITAS 2
Autor: Manuel Bandeira
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 69 (464 págs.)
Avaliação: ótimo
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